A escrivaninha de Lor’themar estava soterrada de papéis. Relatórios, cartas, ordens e inventários se acumulavam precariamente em pilhas que ele havia muito desistira de organizar. Todos os documentos tratavam da curta mas brutal guerra que se abatera sobre Quel’Danas e a Nascente do Sol. Nenhum ocupava-lhe a mente.
Na mão do lorde-regente, estava um único envelope ainda lacrado. Carimbado na cera roxa que selava a missiva havia um grande olho, o símbolo de Dalaran, que parecia encarar o destinatário acusatoriamente, julgando-o por todas as cartas similares que ele havia recebido e jogado fora. O lorde-regente rompeu o lacre e tirou o pergaminho cuidadosamente dobrado que havia dentro. Então Lor’themar reconheceu a letra meticulosa que adornava a página.
O arquimago Aethas Fendessol havia solicitado uma audiência com o lorde-regente diversas vezes nos últimos tempos, mas Lor’themar o havia ignorado deliberadamente. Desde os acontecimentos em Quel’Danas ele tentava esquecer o resto do mundo, mas percebeu que o mundo o acabaria esmagando de qualquer maneira.
Lor’themar suspirou e se recostou na cadeira. Esta carta era muito mais curta do que as anteriores. Desta vez Aethas não estava solicitando, mas simplesmente declarando a data e a hora em que chegaria. Lor’themar correu o dedo pela borda rústica do pergaminho. Ele tinha uma boa ideia do que Aethas proporia, mas ainda não sabia como responder.
No dia da chegada de Aethas, Lor’themar ainda não sabia exatamente o que pensar. Ao atravessar a Torre Solfúria para se dirigir ao salão frontal onde o arquimago apareceria, foi interceptado por Halduron, que segurava um pequeno fardo de lã carmesim. Lor’themar pegou o pacote e o desdobrou, observando uma aristocrática fênix dourada surgir: o tabardo de Luaprata.
– Não – disse ele secamente, devolvendo a peça ao amigo.
– Você deveria usá-lo – insistiu Halduron.
– Que diferença faz? – Lor’themar respondeu, se pondo a caminhar novamente. – Qualquer um a serviço de Luaprata pode usar um desses.
– É um símbolo oficial – continuou Halduron, andando logo atrás. – Você é um chefe de estado. Deve parecer um.
– Eu sou o lorde-regente – retrucou Lor’themar sem diminuir o passo – não o rei.
– Isso não importa, Lor’themar. Você parece um dos Andarilhos.
Lor’themar parou entre um passo e outro.
– Eu sou um Andarilho – respondeu, mais asperamente do que pretendia.
– Você era um Andarilho. – Halduron suspirou. – Você nunca mais será Andarilho, Lor’themar. Nós agora sabemos isso.
Lor’themar curvou a cabeça e respirou fundo.
– Nós vamos nos atrasar, Halduron.
O lorde-regente continuou a caminhar e, depois de algum tempo, ouviu os passos de Halduron o seguindo.
Rommath já estava esperando no salão, se apoiando no cajado e olhando distraidamente na direção da parede oposta. Lançou um olhar para Lor’themar e Halduron assim que eles entraram, em visível desaprovação, e se virou novamente sem dizer nada. Houve um tempo em que ele teria discutido a decisão de Lor’themar de se apresentar como um patrulheiro com muito mais afinco que Halduron, mas isso era passado. Mesmo Rommath tendo sido um estorvo e um incômodo muitas vezes, no coração de Lor’themar só havia espaço para pena. A traição final de Kael’thas havia cobrado um preço muito alto de seu mais leal apoiador.
O ar à frente deles se revolveu emitindo um brilho violeta – o inconfundível sinal de magia arcana. Um instante depois uma explosão de luz azulada iluminou todo o salão, e Aethas se materializou bem ali. O recém-chegado se aprumou, batendo nas vestes, mas Lor’themar não conseguiu evitar o pensamento de que Aethas parecia um tolo. A magitrama roxa e elegante do Kirin Tor contrastava horrivelmente com o cabelo cor de ferrugem e insistia em não cair bem à compleição esguia do visitante. Pelas cartas – e mexericos – Lor’themar sabia que Aethas era um idealista, ainda que perspicaz, e certamente jovem demais para a posição que havia conquistado em Dalaran. De qualquer maneira, a maior parte dos magos sin’dorei mais velhos estava morta. No fim das contas, Lor’themar supôs que a ambição de Aethas era algo bom. Pelo menos alguém ali ainda tinha esperança.
– Bem-vindo de volta, arquimago Fendessol – anunciou Lor’themar.
– Obrigado, lorde Theron – agradeceu Aethas, sorrindo e se curvando graciosamente. – Gostaria de estar voltando para ficar.
– Certamente – respondeu Lor’themar diplomaticamente. – Sua correspondência me informou das intenções da visita. Venha por aqui. Meus conselheiros ouvirão suas solicitações.
Comumente Lor’themar teria levado todos para o pomposo salão de reuniões, na área norte do palácio. Era um cômodo impressionante, projetado especificamente para aquele propósito. Mas o dia estava claro, o horizonte límpido como uma lente de vidro. A ilha estaria visível do outro lado do canal. Lor’themar quase desejava nunca mais ver Quel’Danas de novo, o que o motivou a levá-los a uma alcova a leste da corte principal, com vista para os telhados abobadados e sombrios de Luaprata. Assim que se sentaram, Aethas começou a falar:
– Estou aqui para tratar de assuntos de suma importância e que nos dizem respeito a todos. Vocês sabem a razão pela qual o Kirin Tor se transferiu para Nortúndria, não é?
– Sim. Malygos – respondeu Lor’themar. – O que é que você deseja?
Aethas sacudiu a cabeça: – O poder e a ameaça da Revoada Azul são muito maiores do que nós imaginamos a princípio. Quero formalizar nosso envolvimento com o Kirin Tor. É imperativo que os magos de Quel’Thalas e Dalaran trabalhem juntos uma vez mais, como fizeram em anos passados.
– Não.
Aethas começou a se irritar, e isso transpareceu nos vincos que surgiram-lhe nos cantos da boca e entre suas sobrancelhas. A voz dissidente não era de Lor’themar. Se virando para o opositor, Aethas corrigiu: – Eu me dirigia ao lorde-regente, não ao grão-magíster.
Rommath gargalhou tão amargamente que soou mais como um tossido: – Pois bem, que o lorde-regente decida se sou digno de falar.
– Eu diria que nós eventualmente ouviremos sua opinião, de qualquer maneira – intercedeu Lor’themar, controlando o tom irônico o máximo que pode. – Prossiga, e diga sua opinião.
Os olhos de Rommath brilharam mesmo na sala bem iluminada, que deveria tê-los ofuscado: – Que generoso de sua parte, Lor’themar – respondeu o grão-magíster sem deixar de encarar Aethas. Sua voz soava baixa, como uma cobra pronta para o bote, feroz e perigosa.
– Modera disse algo antes de você sair, Aethas? Suas palavras não se parecem com você. Na verdade, seu discurso cheira à falsa diplomacia dela. Ao menos ela não ousa pôr os pés aqui, o que significa que bom senso não lhe falta. Ah, como sou grato pelas pequenas alegrias!
– Modera concorda comigo nesses assuntos. – Aethas respondeu com firmeza, se negando a morder a isca de Rommath.
– Ela concorda com você – indagou-se Rommath – ou você concorda com ela? Pois eu duvido que o mandariam aqui para falar por eles se você tivesse suas próprias opiniões.
– Com mil raios de sol, Rommath! – Aethas perdeu a paciência. – Você tem algo útil a dizer ou só insultos pessoais?
– Você está cego. – Rommath respondeu rápido e certeiro. – Eles morderam mais do que conseguem engolir e agora têm que lidar com Malygos e Arthas. Eles estão com medo, e estão certos nisso. Precisam de ajuda além do que podem fazer, e para quem eles sempre se viram quando precisam de auxílio para lidar com o arcano?Ah, sim, para nós. Os membros do Kirin Tor juram de pés juntos que você é indispensável, que suas habilidades são inestimáveis. Quando você se transforma numa inconveniência, é logo descartado. – Rommath virou a cabeça para o lado, uma das longas orelhas se contraindo imperceptivelmente enquanto os olhos deslizavam na direção de Halduron e, então, de Lor’themar. – Pergunte a eles. Eles sabem. Mas não tão bem quanto eu.
Aethas encarou Rommath sem expressão: – Quel’Thalas e o Kirin Tor têm sido aliados há mais de dois mil anos. Desde que nos unimos formalmente à Horda, a situação tem estado tensa, mas…
Rommath gargalhou, desta vez ruidosamente, interrompendo Aethas:
– Desde que nos unimos à Horda – repetiu. – É claro. Isso é um pouco estranho, imagino. Você, arquimago Fendessol, se lembra exatamente o porquê de termos nos unido à Horda?
Aethas não respondeu, lançando um olhar diretamente para os olhos de Rommath sem piscar.
– Uma traição monumental – disse Rommath, e sua voz era quase um sussurro. Seus olhos brilharam fervilhando com uma fúria que uma década inteira não havia conseguido apaziguar. – Em Dalaran – continuou – debaixo dos olhos atentos do Kirin Tor.
– Eles nunca tiveram nada a ver com…
– Imagino que você queira dizer – interrompeu Rommath – que o Kirin Tor não fez nada. Não fez nada para evitar, e não fez nada para impedir. E, em vez disso – a voz começou a soar cada vez mais alta – deixaram-nos para apodrecer nas prisões abaixo de uma cidade que muitos de nós chamávamos de lar tanto quanto a própria Luaprata. Uma cidade a que nosso próprio príncipe havia servido como a sua terra natal por mais tempo do que uma vida humana. Uma cidade pela qual lutamos e morremos, a pedido do Kirin Tor. Uma cidade em que, de dentro das muralhas, eles assistiram em silêncio enquanto nós pendíamos de uma forca. A cidade deles.
– O Kirin Tor encontra-se sob nova liderança – respondeu Aethas, e Lor’themar sentiu que o tom controlado falava muito sobre o jovem arquimago.
– Isso é mentira, e você sabe – disse Rommath. – Rhonin pode ser o testa de ferro, mas Modera e Ansirem permanecem no conselho. São as mesmas pessoas que viraram felizes seus rostos quando Garithos nos sentenciou à morte. Eles podem todos queimar no inferno, ou melhor ainda, nas mãos do Flagelo de Arthas – ridicularizou.
– Estaremos torcendo para que nenhum componente do Conselho dos Seis termine nas mãos de Arthas, Rommath – disse Halduron em voz baixa.
– A despeito de seu óbvio desdém pelo Kirin Tor, você parece estar bem informado, grão-magíster – disse Aethas.
– Uma das razões pelas quais eu sou o grão-magíster de Quel’Thalas e você não, penso – retrucou Rommath. – E, como grão-magíster, eu nunca ordenarei que meus magos sirvam em nome do Kirin Tor. Nunca.
Os dedos de Lor’themar se crisparam sobre a mesa, e sua boca se contorceu. Rommath havia mais do que passado dos limites.
– Já basta – disse Lor’themar friamente. – Você não possui autoridade para dar ultimatos. Será decisão minha mandar ou não nossas tropas para Nortúndria, e como eu decidir, você e seus magos farão. Está claro que continuar com isto resultará em nada mais do que brigas mesquinhas e, de qualquer maneira, se vocês dois quiserem continuar, sintam-se livres. Eu, contudo, não quero perder mais o meu tempo. E imagino que o general-patrulheiro sinta o mesmo. Eu tenho negócios a tratar no sul e planejei partir amanhã. Não vou mudar meus planos. Você é bem-vindo, arquimago, mas eu estarei longe por alguns dias.
Aethas não respondeu, mas não conseguiu mascarar a irritação. Lor’themar ficou mais do que contente em deixá-lo transtornado, e se virou para deixar a sala.
– Há aqueles que irão para Dalaran quer você o deseje ou não, lorde-regente. – A voz de Aethas atravessou a sala. Lor’themar parou e se virou para vê-lo enquanto ele continuava. – Dê-me ao menos permissão para falar em nome da regência de Luaprata, e eu farei com que os interesses dos sin’dorei sejam resguardados.
Rommath respondeu com uma bufada, mas não disse nada. Por um momento Lor’themar considerou a solicitação de Aethas, mas o jovem elfo não estava em posição de barganhar. Todos sabiam que sua desenvoltura em assuntos de estado era muito inferior à dos outros homens na sala.
– Um servo o levará até seus aposentos, arquimago. – Lor’themar disse.
Aethas saiu tranquilamente, exceto por um ou dois olhares cortantes lançados na direção de Rommath. O grão-magíster pareceu resoluto, mas Lor’themar podia sentir seus passos oscilantes e as marcas de exaustão que haviam se instalado pesadamente em seu rosto no momento que Aethas sumiu de sua vista. Com atenção, Lor’themar havia notado a fragilidade de Rommath; ele poderia ser dobrado.
No passado, Lor’themar teria considerado hedionda a ideia de cogitar usar de tais expedientes. Agora ele reconhecia a necessidade disso.
Sozinho, o lorde-regente sentou-se à janela de seus aposentos e ruminou os debates da tarde. Distraidamente ficou mexendo na cortina e se pôs a observar os jardins dos pináculos, ouvindo a voz determinada de Aethas ecoar em sua cabeça. “Há aqueles que irão para Dalaran quer você o deseje ou não”. Lor’themar não podia negar isso, mas secretamente concordava com o desdém de Rommath. Como ele poderia confiar numa representação honesta da regência por Aethas, que já se vestia como um Kirin Tor e selava sua correspondência com o selo deles? Ele estava comprometido com a Guerra do Nexus, isso estava claro. Quantos outros ele convenceria a segui-lo? Como lorde-regente, qual era o nível de seu comprometimento com a proteção de seu povo quando eles adentravam território ambíguo?
O tecido lasseou e começou a puir nas mãos displicentes e distraídas de Lor’themar. Ele nem percebeu.
– Eu não tenho certeza – confessou Halduron mais tarde. Ele encontrou o lorde-regente parado, sentado próximo à janela, com o olhar perdido no pôr do sol. Um olhar o desviou em silêncio para a prateleira de bebida, onde ele encheu um copo para seu velho amigo. O general-patrulheiro sentou-se de frente para Lor’themar e disse:
– Acredito que as intenções dele sejam honestas. Só não sei até que ponto podemos confiar na honestidade de intenções, mesmo entre nosso próprio povo.
Lor’themar se levantou e foi até a prateleira para encher o copo novamente: – Preocupa-me o fato de que, se dermos autoridade para que ele aja em nosso nome, ele possa, intencionalmente ou não, fazer promessas que eu não tenho intenção de cumprir. – O altivo elfo se deteve e olhou para o teto entalhado. – Por outro lado, se muitos sin’dorei o seguirem até Dalaran, na prática ele acabará se tornando o líder de qualquer maneira, e eu não o quero assumindo esse papel sem obrigações para com a coroa… digo, Luaprata.
– Seria melhor se Rommath não fosse tão inflexível – ponderou Halduron. – Ele viveu em Dalaran por muito tempo e carrega o título de arquimago, como você sabe. Ele possui experiência suficiente com o Kirin Tor para saber como lidar com eles, e lealdade o bastante para com esse país para, penso eu, ter nossa confiança. Ele poderia ser um ótimo intermediário para Aethas.
Lor’themar sorriu ligeiramente ao ouvir Halduron: – Que estranho ouvir você falar bem de Rommath!
– Eu nunca concordei com aquela situação envolvendo M’uru, nem com os Cavaleiros Sangrentos – admitiu Halduron – mas isso ficou para trás, e nós não temos mais razões para duvidar dele. Se fosse nos trair, ele o teria feito quando Kael’thas… – As palavras fugiam e congelavam na garganta de Halduron. Os dois permaneceram em silêncio por algum tempo.
Bem – prosseguiu Halduron – ele já o teria feito.
– Então o que você acha? – Lor’themar mudou de assunto e retornou ao assento perto da janela. – O que nós devemos fazer sobre Aethas e Dalaran?
– Aethas se considera um membro do Kirin Tor – respondeu Halduron. – E há vários outros que adorariam usar aquelas vestes também. Se o Kirin Tor quer aceitar elfos sangrentos, nós não podemos impedi-los.
– Não, nós não podemos. – Lor’themar concordou e ficou em silêncio. – Contudo, minha intuição me diz que nós devemos nos afastar de envolvimento oficial com a Guerra do Nexus. Aethas deve se reportar a nós periodicamente, e nós devemos manter limites claros para ele. Mas aqueles que quiserem oferecer seus serviços devem fazê-lo sob a bandeira do Kirin Tor, não de Quel’Thalas.
Um canto da boca de Halduron se contorceu num riso cínico, e Lor’themar fingiu não perceber a melancolia nos olhos do amigo. – O que foi que você disse mais cedo sobre ser um Andarilho? Você soa mais como um rei a cada dia, Lor’themar – observou Halduron.
De onde estava sentado, Halduron não viu os dedos de Lor’themar se retesando em volta do copo.
Alguns dias depois Lor’themar, montado em seu falcostruz, tomou o caminho entre os sopés ao norte das Terras Pestilentas Orientais. O lorde-regente estremeceu ao olhar a paisagem; afinal, era um elfo e, mais ainda, um patrulheiro, filho dos bosques, da água límpida e das folhas douradas. A visão do solo rachado e das árvores atrofiadas ao leste de Lordaeron partiu-lhe o coração e quase o fez vomitar. Este teria sido o destino de Quel’Thalas, não fosse pela vigilância contundente de seu povo.
Lor’themar olhou para trás. Três Andarilhos da guarda de honra o seguiam, por insistência de Halduron e Rommath.
– Definitivamente – Halduron havia dito – você não deveria sequer estar indo. Pensei que você desistiria dessa ideia quando Aethas decidiu ficar, mas posso ver que nada do que eu disser irá impedi-lo, então ao menos leve uma escolta. Não discuta. – Rommath queria ter enviado alguns Cavaleiros Sangrentos, o que estava fora de questão. Mas Lor’themar apontou que eles não seriam bem recebidos. “Nem eu serei”, pensou. Felizmente Rommath não insistiu mais.
Enfim a cordilheira que Lor’themar procurava apareceu. À primeira vista não se vislumbrava mais do que outra saliência num paredão rochoso repleto de formações idênticas, mas havia mais. O lorde-regente conduziu o falcostruz para fora da trilha e continuou em frente, a passo rápido. Não havia necessidade de sutileza, pois os batedores já os teriam visto.
Como esperado, a meio caminho da trilha duas figuras subitamente surgiram de trás das rochas. Suas espadas bateram ao fecharem o caminho, e o som ecoou violentamente na calmaria assustadora das Terras Pestilentas.
– Quem deseja ir até o Abrigo Quel’Lithien? – perguntou um deles.
Lor’themar devolveu o olhar de desprezo e respondeu:
– Não seja idiota. Você sabe quem sou eu.
O outro o encarou:
– Isso não significa que você seja bem-vindo, lorde Theron.
Lor’themar sacou as duas espadas que se cruzavam às suas costas. Os guardas de Quel’Lithien empunharam as armas com mais firmeza, e o lorde-regente viu um deles sinalizar com os dedos discretamente, anunciando o ataque aos outros que certamente se escondiam pelo terreno. Em silêncio, Lor’themar atirou suas lâminas no chão, se livrou do arco e da aljava e também os deixou cair. Ele sinalizou para que suas escoltas fizessem o mesmo e então levantou uma sobrancelha.
– Isso os convence da honestidade das minhas intenções?
O primeiro Lithien falou de novo:
– Diga-nos porque veio.
– Trago notícias para o lorde patrulheiro Falcolança e para a alta-sacerdotisa Clamacéus – ele respondeu. – A respeito… – Lor’themar limpou a garganta – a respeito do príncipe Kael’thas.
Os guardas pensaram por um instante e se entreolharam rapidamente, mas na maior parte do tempo seus olhos não abandonaram Lor’themar, “olhos ainda azuis e imaculados”, conforme ele observou. Por fim um dos guardas acenou com a cabeça para a cordilheira:
– O lorde patrulheiro decidirá o que fazer com você. Siga-me.
O outro estalou os dedos e, como Lor’themar havia previsto, meia dúzia de batedores Lithien saltou de ravinas e fissuras na rocha para recolher as armas que ele e seus guardas deixaram cair. Em silêncio, Lor’themar os seguiu.
No topo da trilha, aninhado entre rochedos e vegetação seca, o Abrigo Quel’Lithien surgiu na frente deles. Seu cercado de madeira estava desbotado e decadente, com certeza devido aos castigos da peste, e os Andarilhos camuflavam as vigas com folhagem. O estômago de Lor’themar respondeu estranhamente à visão do abrigo, e ele tentou não pensar nos dias em que as cercanias eram verdejantes e suas visitas recebidas com brados amigáveis, ao invés de lâminas nervosas. Aqueles dias haviam terminado.
Ele deixou o falcostruz aos cuidados de uma das batedoras. Ela a recebeu e o deixou com um olhar desconfiado. Um dos patrulheiros que o havia detido na trilha havia se adiantado para o abrigo. Enquanto Lor’themar assistia, o patrulheiro retornou, trazendo dois elfos que ele não encontrava havia anos.
– Lor’themar Theron! – A voz da alta-sacerdotisa Aurora Clamacéus soava comedida e nada rude. – Devo admitir que estou surpresa por encontrá-lo aqui.
– Você certamente tem coragem – Renthar Falcolança disse cruelmente – mostrando sua cara aqui. Eu deveria ter ordenado aos arqueiros que o transformassem numa peneira.
As palavras queimavam, mesmo já sendo esperadas. Lor’themar fechou o olho bom e lentamente o abriu de novo.
– Trago notícias – disse ele tranquilamente – que vocês devem saber.
– Por que não enviou uma carta? – Renthar retrucou.
– Você a teria lido? – Lor’themar respondeu. O estremecimento no canto da boca de Aurora e a carranca que se formou no rosto de Renthar responderam o que ele já sabia: não, eles não teriam lido. – Eu não vim por motivos menores – continuou. – Vocês ao menos ouvirão o que tenho a dizer?
Renthar e Aurora o encararam em silêncio, e então se dirigiram para dentro do abrigo. Lor’themar os seguiu, dolorosamente consciente dos olhares dos elfos superiores observando sua passagem.
Os postos dos Andarilhos nos Reinos do Leste nunca haviam sido muito exuberantes, mas a austeridade de Quel’Lithien era evidente. Várias paredes possuíam marcas profundas deixadas por lâminas, e as manchas escuras no chão certamente eram sangue. Ainda assim, os elfos mantinham o orgulho e decoravam o abrigo; as cortinas, apesar de marcadas pelo tempo, eram bem costuradas e ajustadas com pontos muito bem dados. O antigo mapa do leste de Lordaeron afixado à parede continha muitas anotações, feitas numa letra elegante, e apenas uma mancha de tinta num canto do pergaminho amarelo. Uma estranha dor começou a crescer em Lor’themar quando ele viu aquilo, como se houvesse redescoberto uma carta de amor esquecida. Ele havia vivido a vida de um Andarilho num passado que agora parecia tão distante quanto um sonho.
– Por aqui – disse Renthar, apontando na direção de uma pequena sala cuja porta abriu com um empurrão. – Feche a porta – disse a Lor’themar sem se virar.
Lor’themar se sentou de frente para Aurora. Renthar retirou da mesa estreita várias peças de armaduras de couro ensanguentadas antes de se sentar ao lado dela, o que quase fez com que o lorde-regente de Quel’Thalas risse, tendo a impressão de que os dois o olhavam como juízes num tribunal.
– Você disse que tinha algo a dizer. – A voz de Renthar cortou o silêncio. – Então diga.
– Semanas atrás, uma parte das tropas dos Solfúria retornou.
Os olhos de Renthar e Aurora arregalaram-se, incrédulos. Isso deixou Lor’themar satisfeito, ainda que de modo vazio.
– Pela Nascente do Sol – disse Aurora suavemente – não posso dizer que eu não tenha imaginado que eles retornariam.
– Pois então… – Os olhos de Renthar brilharam estranhamente, lembrando os de Rommath. – Você está aqui por ordens do príncipe? Para desculpar-se oficialmente?
– Poderia ser – respondeu Lor’themar – se ele estivesse vivo.
Os elfos superiores já pareciam surpresos, mas nada se comparava à expressão deles naquele momento. Ambos empalideceram.
– Explique-se! – ordenou Renthar.
Lor’themar respirou fundo e começou a relatar os acontecimentos do passado recente. Ele não havia antecipado a dor que seria evocar novamente toda a história, especialmente para duas pessoas que o desprezavam tão avidamente. Ele sacava as palavras uma a uma, às vezes à força, cuspindo-as para o outro lado da sala, como que para livrar-se delas. Ao finalmente terminar ele piscou, como se estivesse acordando.
– A Nascente do Sol retornou a nós, portanto – disse Aurora, virando o rosto para a janela.
– Sim – respondeu Lor’themar.
O silêncio absoluto que reinava nas Terras Pestilentas os cobriu. Lor’themar baixou a cabeça enquanto revivia o momento em que ele próprio compreendeu, quando a poeira levantada pela batalha já havia assentado em Quel’Danas e a Nascente do Sol brilhava majestosa e orgulhosamente uma vez mais. Ele havia olhado para a Nascente com a mesma expressão que agora estava entalhada nos rostos de Renthar e Aurora, e aquele brilho não o enchera de alegria. Ele não poderia imaginar que o preço do retorno da Nascente seria caro demais.
A voz de Aurora interrompeu a reflexão: – Eu estava mesmo estranhando a recente diminuição das dores causadas pelo vício. Eu não tenho precisado de… ajuda… para lidar com ela.
– A magia da Nascente do Sol está diferente – disse Lor’themar. – Pode ser preciso algum tempo para fazer ajustes.
– Algum tempo, sim. – Aurora esticou o braço e pareceu querer alcançar algo que Lor’themar não via, torcendo e girando os dedos como se manipulasse uma longa fita: – Eu sou uma sacerdotisa da Luz. Eu conheço essa magia.
Parte 2