Registro Onze: O Ermo do Medo
A primeira vez em que eu senti medo — de ficar realmente aterrorizada — foi na ilha Errante. Eu era só uma filhotinha, e tinha ido até a Grande Biblioteca para ler o Livro da Tartaruga. Depois de ter lido algumas páginas, derramei um frasco de tinta no pergaminho.
Tentei limpar as manchas, mas só piorou as coisas. Então eu entrei em pânico e enfiei o livro em um canto empoeirado da biblioteca, na esperança de que ficaria em segredo para sempre.
Nos três dias que se seguiram, eu vivia aterrorizada, certa de que seria descoberta. Mal conseguia comer ou dormir. Mal saía do quarto. O medo tinha me dominado como um dos duendes malignos da floresta das histórias assustadoras que vovó Mei contava. No fim do terceiro dia, os funcionários da biblioteca descobriram o que eu tinha feito. (Por sorte, o livro era uma cópia que eles deixavam à mão.) Como punição, meu pai me forçou a escrever a letra da “Canção de Liu Lang” milhares de vezes, mas isso não me incomodou. A pior parte tinham sido os três dias horríveis.
Eu nunca mais tinha me sentido tão amedrontada assim… até chegar ao Ermo do Medo, lar dos mantídeos. Entrei na região mais longe do Espinhaço da Serpente do que eu gostaria.
Uma enorme ravina separava as Estepes de Taolong do Ermo do Medo. Segui para oeste, acompanhando o abismo, até chegar a uma ponte natural — um tronco oco de árvore gigante — que poderia usar para atravessar.
O Sha do Medo tinha transformado o ermo em uma estranha imagem espelhada de Taolong. O terreno era o mesmo — colinas cobertas de grama, rochas, e árvores kypari enormes — mas tudo parecia estranho e pouco natural. Um punhado de nuvens negras girava numa espiral furiosa no céu, que emanava uma luz fantasmagórica. Borrões negros e brancos de energia do Sha borbulhavam pelo solo. Eles me lembravam das manchas de tinta do Livro da Tartaruga. De fato, cada vez que eu respirava ou dava um passo, um calafrio percorria minha espinha, e me sentia como se estivesse revivendo aqueles dias de terror.
Queria correr. Teria corrido se não estivesse pensando no tio Chen. Eu tinha que encontrar o Parque Cervejeiro do Poente.
Quanto mais me concentrava no lugar, mais eu me acalmava. Fiquei repetindo o nome mentalmente enquanto me aproximava da base de uma árvore kypari (chamada Kor’vess, como soube depois). As raízes expostas eram tão grandes que se curvavam como arcadas enormes. Pedacinhos de âmbar brilhante caíam dos galhos, flutuando pelo ar como pirilampos preguiçosos. Aqui e ali, eu via portas altas e janelas hexagonais escavadas no tronco da árvore. A arquitetura tinha um quê de inseto, e me dei conta de que os mantídeos deviam ter criado aquelas estruturas. Os insetos viviam dentro das árvores!
Por sorte, não vi nenhum mantídeo por perto — pelo menos, nenhum vivo. Havia cadáveres de insetos por toda parte, como se alguma batalha tivesse acontecido ali. Ainda assim, decidi ser cuidadosa e me mantive à sombra das raízes kypari, procurando pistas que me indicassem o caminho do Parque.
Minha sorte começou a mudar quando encontrei os restos de um barril de madeira.
Definitivamente tinha sido feito por pandarens. Gotas de âmbar brilhante cercavam os destroços. Então me dei conta de algo: será que os pandarens que viviam no Ermo do Medo estavam procurando seiva de kypari? Fazia sentido. Os mantídeos usavam âmbar para um monte de coisa, desde criar armas até construir seus lares. Eu inclusive ouvira falar que aquela substância gosmenta tinha propriedades curativas. Em outras palavras, seria o ingrediente perfeito para fazer um lote de cerveja rara.
Levei quase uma hora para encontrar o parque cervejeiro, perto de outra árvore kypari próxima a Kor’vess. Pandarens usando armadura leve andavam pelo acampamento rústico.
Vapor espiralava de caldeirões cheios de lúpulo e cevada fervente. Veios de seiva escorriam da árvore para dentro de barris. No geral, o lugar tinha um clima aconchegante, mesmo sendo um pouco tosco.
Quando dei alguns passos lá dentro, ouvi uma voz familiar.
— … os Shado-pan a viram pela última vez indo em direção ao Ermo do Medo — dizia tio Chen. Eu o vi perto dos fundos do acampamento, ao lado de mais três pandarens.
— Então o que estamos esperando? — respondeu alguém. Era uma mulher mais velha, com dois coques no cabelo. Ela chutou um pandaren gordo que estava cochilando no chão. — Levante-se, Grande Dan! Não podemos nos dar ao luxo de perder outro Malte do Trovão.
— Procurando por mim? — interrompi.
Todas as cabeças se viraram ao mesmo tempo. A surpresa estampada no rosto do tio Chen era impagável.
— Li Li! — Ele me ergueu do chão e me deu um grande abraço. Subitamente, todo o meu medo desapareceu. Comecei a me desculpar por sair da cervejaria sem pedir, mas tio Chen me interrompeu.
— Como eu poderia me zangar com você por sair para explorar? — disse ele. — Foi o que eu fiz a vida inteira. Eu estou aliviado por você estar bem.
Tio Chen explicou por que não tinha me encontrado no Espinhaço da Serpente. Os mantídeos tinham atacado certos pontos ao longo da grande muralha, bloqueando a passagem dele. Quando os insetos foram derrotados, encontrou o monge Shado-pan Min, que lhe contou o que tinha acontecido comigo. Meu tio tinha acabado de voltar ao parque cervejeiro e estava organizando uma equipe de busca.
Uma equipe de busca formada por Maltes do Trovão! Eles se chamavam Han, Mama e Grande Dan.
— Você atravessou Taolong e o Ermo do Medo sozinha? — perguntou Han.
— Claro que sim! — Mama apertou minha bochecha. — Ela é uma Malte do Trovão, não é?
Grande Dan grunhiu, se levantou e esfregou os olhos. Eu imaginei que tanta movimentação assim devia ser algo raro pra ele. Ele me encarou em silêncio antes de dizer: — Ela… ela se parece com a Evie.
Mama, tio Chen e Han aquiesceram e baixaram as cabeças. Quando perguntei quem era essa Evie, eles me conduziram para fora do parque cervejeiro e me levaram até a ravina que dava no Ermo do Medo. Um memorial de pedra tinha sido erguido na beirada do abismo.
Era dedicado a Evie.
Evie Malte do Trovão.
Ela morreu enquanto caçava no Ermo do Medo, morta por sha ou pelos mantídeos (ou os dois). Tio Chen tinha encontrado Evie. Nunca tinha visto essa garota, mas sentia sua falta.
Se Grande Dan dizia que eu me parecia com Evie, será que nossas personalidades eram iguais também? Será que poderíamos ter sido boas amigas, ou mesmo tipo irmãs?
O sha e os mantídeos acabaram com as chances de eu descobrir a resposta para essas perguntas. Estava zangada, não só por causa de Evie, mas por tudo que eu havia visto em minha jornada por Pandária. De um jeito ou de outro, o sha tinha deixado todo o continente num estado de caos. Quantos inocentes não morreriam que nem a minha prima?
— Vou levar você de volta ao Vale dos Quatro Ventos — disse tio Chen. — É para você ficar lá até que a gente tenha dado um jeito no sha e nos mantídeos. Não é seguro explorar um lugar selvagem como esse.
— Não — respondi. Explorar era a última coisa que eu tinha na cabeça. — Existe a hora de explorar e a hora de fincar o pé e lutar. O senhor escreveu isso para mim em uma de suas cartas. Bom, vou seguir seu conselho. Quero ficar e ajudar.
Eu fiquei com medo de que o tio Chen fosse recusar e me mandar para o vale mesmo assim, mas, depois de algum tempo, um sorriso apareceu nos cantos do seu rosto gorducho. — Hunf. O que você disse foi digno de um verdadeiro explorador.
Tendo dito isso, ele retornou para o parque cervejeiro. Havia muito a planejar. Talvez eu não fosse lutar contra o sha e os mantídeos nas linhas de frente, mas faria o possível para ajudar, nem que tivesse que preparar bandagens e cozinhar. Eu queria que a morte de Evie não fosse em vão… que Buwei e o Pequeno Fu pudessem voltar para suas famílias e começar uma vida nova… e que todos os que eu encontrei em minhas viagens pudessem viver livres da influência do sha.
Eu faria com que ainda houvesse uma Pandária para explorar quando tudo isso terminasse.
— Li Li Malte do Trovão