Dez estivera seguindo os estranhos a tarde inteira. Estava certo de que tinham dinheiro. Podia ver isso na postura deles, nas roupas, na maneira confiante como andavam pelo mercado. Discernir a riqueza de vítimas em potencial tinha mantido Dez vivo naqueles tempos difíceis.
Havia quatro deles — quatro viajantes do norte, a julgar pelos pesados mantos. E se as vestes fora de época não eram prova suficiente da origem estrangeira dos recém-chegados, o guia escolhido por eles certamente era: Jogu, o velho bebum jinyu que passava a maior parte do tempo cochilando à beira do laguinho de água estagnada perto do mercado. Ele era magro para um jinyu, dado a arengar engroladamente, e muitas escamas faltavam em seu corpo. Por que motivo aqueles cavalheiros o teriam escolhido como guia era um mistério para Dez. Mas, de qualquer forma, eles deviam ser mãos-abertas, pois Jogu parecia ter mais energia do que jamais demonstrara em anos, gesticulando e apontando para as paisagens e vistas medíocres do Mercado de Meia Colina como se fossem monumentos do Templo de Jade.
Quanto aos quatro viajantes, eles se portavam com discrição, sem darem corda às macaquices do homem-peixe. Era óbvio que aqueles pandarens esperavam um guia mais direto e silencioso até seu destino, e já se arrependiam da escolha.
Dez se recostou contra a parede do beco e tentou pensar. Era difícil pensar com a barriga doendo de fome, mas aquilo não mudaria se ele não pusesse a cabeça para trabalhar. A colheita fora escassa naquela estação, mesmo no Vale dos Quatro Ventos. Os fazendeiros andavam mais cuidadosos com seus produtos, e havia mais guardas ao longo das rotas de comércio do que jamais houvera. Já fazia um dia desde que ele tinha comido — um pêssego que caíra da carroça de um vendedor de frutas na saída do mercado. Ou… que parecera ter caído, justo quando a carroça passara perto de onde Dez se escondia nas sombras. Dez já tinha se beneficiado da “falta de cuidado” de Kim Won Gi antes; ele queria até agradecer ao generoso comerciante… mas não estava preparado para parar de roubar dele ainda. De que outra forma um ladrão iria sobreviver?
Ladrão. Dez não tinha orgulho do que fizera, do que precisava fazer. Se seu pai estivesse vivo, ele torceria as patas, afligido pela tristeza.
Não é possível mudar as estações.
O grupo seguiu. Jogu tinha terminado um longo solilóquio sobre o Altar do Comerciante Honesto, uma apresentação emotiva e épica, acompanhada de gestos e salamaleques. Como os clientes de Jogu se mostraram muito receptivos à sua empolgação — nem lhe deram gorjeta alguma enquanto estava parado lá, com os braços levantados como uma robusta árvore taolun —, ele deu de ombros e voltou a caminhar. Os estranhos o seguiram, e um deles balançou a cabeça.
Dez tinha certeza de que eles estavam indo para o Conselho dos Lavradores. Era o único prédio importante naquela direção. Ele sorriu. Claro que aqueles forasteiros abastados estavam ali para conhecer o poderoso sindicato dos fazendeiros, talvez para discutir contratos e negócios. Mercadores, talvez? Isso explicaria os grandes mantos que cobriam barrigas amplas e bem alimentadas, e — se Dez não estivesse enganado — escondiam bolsos fundos e sacos cheios de ouro. Observando com atenção, podia ver o modo como o tecido negro repuxava perto da cintura dos viajantes. Sim. Havia dinheiro ali embaixo. Seus dedos tremeram.
O grupo estava cruzando a Ponte Fo quando aconteceu. Nam Pata de Ferro, o despenseiro, tinha acabado de chegar no ponto mais alto da ponte com uma carroça cheia de salmões. Uma das rodas tinha se afrouxado, e enquanto Nam acenava para os viajantes que se aproximavam, a carroça cedeu. O robusto hortelão se voltou, alarmado e impotente enquanto a carroça sobrecarregada batia com estrondo no chão e despejava o conteúdo de uma noite de pesca farta pela ponte.
— Não! Não! — gritou, e seus bigodes se sacudiam em frustração.
Uma avalanche úmida e prateada se derramou pelas tábuas da ponte, e a balaustrada canalizou a torrente para o aterrorizado Jogu e seus clientes. O pobre jinyu, obviamente ainda bêbado, repetiu os gritos de Nam — “Não! Não!” — e tentou fazê-los parar com gestos súplices desesperados. Os salmões mortos não deram a mínima.
Com uma pancada úmida, o grupo foi soterrado. Dez sorriu ao pensar nos viajantes empapados de gosma fedida de peixe. A onda passou pelo grupo em um instante, e os últimos salmões escorregaram para os lados da ponte e caíram no rio lá embaixo. Os quatro mercadores pandarens se agacharam e se agarraram às tábuas para não cair, e agora ajudavam uns aos outros a se levantar. Jogu fora arrastado com os peixes para a água, e não emergiu mais. Isso era mais engraçado que preocupante: o ébrio jinyu estava mais confortável na água que em terra. Gritos e risos ecoaram do mercado, e a família de Nam e outros aldeões vieram correndo.
Dez sabia que a hora de atacar tinha chegado.
Saindo das sombras, ele se uniu à multidão que ia em direção à carroça tombada. Leve e magro demais para sua idade (catorze anos), com tufos de pelo cinzento que eram brancos nos demais pandarens, Dez não teve dificuldade para passar despercebido em meio ao caos. Raramente tinha. Discrição era uma especialidade dele, o filho caçula de um pobre plantador de nabos, batizado com a posição em que chegou ao nascer.
Os cinco irmãos mais velhos tinham dividido a propriedade quando o pai morrera, mas logo descobriram que cinco lotes de uma fazenda paupérrima não poderiam sustentá-los. Para que iriam dividi-la ainda mais, se o resultado era passarem fome? Assim, os cinco mais jovens tiveram que escolher entre ficar como empregados… ou partir. Dez partira, para o alívio dos parentes. Não havia nada na fazenda para um pandaren jovem, mesmo. Duvidava que eles tivessem notado sua ausência.
Mais à frente, ele podia ver os membros da família Pata de Ferro tentando levantar a carroça enquanto os outros juntavam quantos peixes podiam em cestos, panelas e aventais. Nam aproximara-se dos quatro estranhos com a cabeça abaixada, desculpando-se atarantado. Dez esperara que os ricos mercadores ficassem furiosos com aquela recepção gosmenta a Meia Colina, mas surpreendeu-se ao ver que eles estavam rindo — uma risada suave e cheia que sacudia a ponte enquanto eles tiravam escamas dos chapéus, batendo nos ombros uns dos outros. Um dos viajantes tirou um peixe enorme do colarinho e o entregou a Nam com um aceno. O despenseiro, aliviado com o bom humor dos forasteiros, afastou-se para supervisionar a coleta dos peixes. O preço do salmão estava alto, e fazia meses desde que sua carroça estivera tão repleta.
Dez se adiantou, juntando peixes discretamente com o resto da família Pata de Ferro. Ao se aproximar dos viajantes, fingiu escorregar e trombou contra o maior deles. O mercador se voltou e Dez engoliu em seco. Seu alvo só tinha um olho. Uma longa cicatriz cruzava o rosto do viajante da testa até o queixo, e ele usava um tapa-olho. O mercador obviamente estava acostumado com esse tipo de reação, pois sorriu e ajudou Dez a se firmar, instando-o a tomar cuidado com as tábuas molhadas. Sua voz era firme, mas gentil, e o jovem ladrão sentiu uma pontada de culpa por roubar de uma alma tão boa.
Mas bons pensamentos não calam uma barriga roncando.
Dez curvou-se timidamente, um mero filhote de aldeia, e se afastou. A bolsa de couro que afanara estava escondida sob sua túnica imunda, e ele estava ansioso para ver as riquezas que ela continha. Ouro? Era leve demais. Joias? Talvez. Dez esperava que fosse o suficiente para pagar alguns almoços quentes e outro cobertor. A chegada do inverno o preocupava. O pequeno pandaren também surrupiara alguns peixes pequenos, mas temia abusar da sorte. Seu estômago roncou outra vez.
Ele chegou aos limites do mercado e fingiu espanar escamas das mangas da túnica enquanto olhava a cena atrás de si. Ninguém notara que ele se afastara, e todos ainda se ocupavam em recuperar os peixes antes de serem todos carregados pela lenta corrente. Puxando a bolsa da túnica, ele afrouxou rapidamente o cordão que a fechava e esvaziou o conteúdo na palma da pata.
Não era ouro, nem joias. Era um pergaminho. Dez esmoreceu. Um pergaminho imbecil enrolado num bastão de bronze com pontas de marfim. Ele ergueu o artefato delicado, rompendo o selo de cera para ver se poderia fazer o pergaminho em pedaços. Talvez ele conseguisse vender o marfim.
Seus olhos passaram pela página, lendo as palavras sem querer. Anos antes, Sete ensinara o caçula a ler, para que ele ao menos ajudasse na contabilidade pós-colheita. Dez aprendera rápido, e aquela habilidade se revelara útil quando ele tinha que escolher qual sacola roubar de uma banquinha de feira não vigiada. A mensagem fora escrita com pinceladas fortes, urgentes, e, ao ler, Dez sentiu o pânico crescendo em seu coração.
Honorável Haohan Garra de Barro, Líder dos Lavradores no Vale dos Quatro Ventos,
Esta mensagem traz uma saudação, uma bênção para seus campos e um aviso. Nossas fontes indicam que várias tribos yaungóis estão vindo para o leste, pelas Estepes de Taolong, de um modo que lembra mais uma fuga que um ataque. No passado, isso ocorria quando os mantídeos estavam em revolta, suas colmeias tendo crescido tanto que até os poderosos bovinos fugiam deles. Nossas próprias forças estão espalhadas, Haohan, e precisamos começar a estocar suprimentos para o conflito que se avizinha. Nós sabemos de sua colheita fraca esse ano e do seu dever de alimentar o povo do vale e cercanias. Mas nossa necessidade é premente. Por favor, mande o que puder com esses estimados guardiões. Eles se certificarão de que tudo o que sua generosidade nos ofertar chegará aqui em segurança.
Aquelas não eram as palavras de um comerciante.
Estimados guardiães. os viajantes não tinham vindo fazer negócio. O símbolo no final do pergaminho fez Dez respirar fundo. Era uma marca simples, um círculo com linhas curvas descendo pelos lados, a face rosnante de um tigre branco.
Os Shado-pan!
Súbito, houve uma comoção na ponte. Dez se virou para ver, enfiando o pergaminho na túnica. Jogu tinha emergido da água e estava gritando e apontando… apontando para Dez!
— Ladrão! Meus bons mestres foram roubados! Ladrão! Ladrão!
No começo, ninguém sabia direito a que o jinyu histérico se referia. Alguns olharam desconfiados para Dez e outros riram de Jogu, revirando os olhos ao ouvir a conversa de bêbado. Mas o grande pandaren com quem Dez trombara bateu no bolso e fez um gesto rápido aos companheiros. Seus mantos caíram, revelando armas — espadas, lanças, lâminas que brilhavam perigosamente ao Sol. Sim, eles realmente estavam escondendo algo. Dez quase acertara.
Hora de correr.
Praguejando baixinho, Dez se virou e disparou pelo mercado.
Um mercado cheio de fazendeiros, pescadores e vendedores de fruta, e quem eu decido roubar? O pelotão de assassinos armados.
Ele tentava se lembrar do pouco que sabia sobre os Shado-pan. Nunca prestara muita atenção em História. Eles eram uma força militar de elite, algo raramente visto naquele vale sereno. Dez sabia que os Shado-pan protegiam a muralha a oeste, que eles protegiam as terras de Pandária de criaturas malignas como os mantídeos. Ouvira histórias de outros ladrões e malfeitores que viviam com ele pelos becos. Histórias sobre os Shado-pan e sua habilidade de caminhar na lâmina de uma espada, de pegar uma flecha em pleno voo e de golpear tão forte um inimigo que seu coração explodia dentro do peito. Ele ouvira dizer que os Shado-pan não perdoavam os que os aborreciam, nem esqueciam quando eram afrontados.
Dez tocou o peito enquanto corria e sentiu seu coração — ainda intacto — martelando furioso. O pergaminho pulava com cada passada, as pontas de marfim batendo contra seu peito ossudo. Quase como se chamasse os perseguidores de Dez.
Ele podia ouvir os passos pesados ecoando atrás de si. Aqueles guerreiros eram rápidos. Houve um assobio, e Dez se agachou, evitando uma lança que se cravou com um baque na viga que apoiava uma das bancas do mercado à sua frente. O mercador gritou e atirou uma panela de sopa. O caldo quente espirrou na face de um hozen irritadiço que vendia suprimentos de culinária na banca seguinte. Pulando de raiva, o macaco atirou uma concha de mesa em Dez, que se esquivou do utensílio enquanto procurava uma rota de fuga.
Ele viu o próprio reflexo em outra panela pendurada na banca do vendedor de sopa. Dois dos Shado-pan estavam se aproximando rápido, um de cada lado… e não havia como continuar.
Assim, ele não continuou. Dez saltou, descendo com um pé sobre a haste da lança Shado-pan enfiada na viga à frente. Rezando para que o bambu fosse resistente o bastante para suportar seu peso, Dez se agachou enquanto a haste se curvava e depois catapultou-se para o alto, passando por cima da banca e deixando os dois Shado-pan piscando ao sol do fim de tarde.
Arma bem-feita. Pelo menos eu acertei uma coisa: esses viajantes são ricos.
Ele pousou e rolou na grama atrás do mercado. Gritos vinham de todos os lados; ele ainda não havia deixado os perseguidores para trás. Os dois Shado-pan deram a volta na banca, obviamente pouco impressionados com aquela demonstração acrobática. O jovem ladrão sabia que não tinha chance de se evadir daqueles pandarens, mais fortes e mais rápidos, em campo aberto. Teria que tentar despistá-los na cidade. Praguejando outra vez, ele saiu correndo pelos limites do mercado em direção à aldeia. No alto, um falcão gritou.
A aldeia ficava no topo da colina, e os Shado-pan estavam quase alcançando-o quando ele chegou à taberna Nabo Preguiçoso. A estalajadeira Lei Lan gritou quando Dez irrompeu à porta, derrubando a bandeja de bebidas que ela carregava. O jovem pandaren lamentou ver a boa cerveja Malte do Trovão desperdiçada por sua pressa, mas não havia nada que ele pudesse fazer. O primeiro Shado-pan a surgir atrás dele escorregou na espuma e tropeçou na estalajadeira, que tinha acabado de se levantar. O segundo pulou sobre os dois e perseguiu Dez até a cozinha, rugindo alto. Pelo jeito, aquele ladrãozinho de quinta já causara mais problemas aos Shado-pan do que eles esperavam.
Dez correu para a cozinha, assustando tanto o mestre de temperos Jin Jao que ele atirou suas encomendas para o ar, praguejando. Continuou correndo, escorregando por entre as pernas de Jin Jao e subindo as escadas. Ele podia ouvir os passos do perseguidor Shado-pan passando pela cozinha, atrás dele, e ouviu os protestos furiosos do mestre de temperos por causa das mercadorias estragadas e por ter sido empurrado por “bandidos imundos”. Dez chegou ao topo da escada e seguiu pelo corredor, tentando abrir as portas. Era ali que os funcionários da taberna viviam, e, claro, eles tinham trancado as quartos. Dez praguejou, sabendo que não tinha tempo de arrombar as fechaduras.
A última porta estava destrancada e, pelo cheiro, Dez percebeu que era ali que Den Den vivia. Den Den era o balconista hozen da taberna. Não era um mau sujeito para um macaco, e com certeza era mais afável que seu primo atirador de conchas. Den Den uma vez aceitara uma romã — obviamente roubada da banca de Gi — em troca de um caneco de cerveja Malte do Trovão, e Dez sempre se lembrava do gesto generoso. Mas o quarto era um covil fétido que parecia mais um monturo que uma residência. Roupa de cama suja, pilhas de sementes, um barril cheio de cascas de frutas e… uma boneca que parecia uma hozen feita com cabelo empapado. Dez franziu o nariz e começou a escavar o lixo encostado à parede, procurando a janela. Finalmente, um raio de luz tocou seus dedos. Ele conseguira!
— Afaste-se da parede, ladrão!
A voz era zangada e firme. Dez quase podia sentir a lança sendo mirada em suas costas. Virando-se devagar com as patas ao alto, tentou forçar um sorriso. Dois Shado-pan estavam à porta, e o terceiro chegou, pingando cerveja.
— Olá, cavalheiros. Bem-vindos a Meia Colina. Eu estava aqui procurando um remédio para a minha mãezinha doente e…
— Quieto, pivete! — rugiu o guerreiro molhado, brandindo a espada. Ele estava furioso por ter se molhado de cerveja e por ter derrubado a adorável estalajadeira daquela maneira tão sem cerimônia. Dez decidiu ficar de boca fechada.
Outro Shado-pan, o que havia ajudado sem querer a fuga de Dez com sua lança no mercado, pôs a pata no ombro do companheiro furioso. Ele usava um cachecol vermelho, e os outros dois abriram espaço para deixá-lo passar. Embora ele tivesse recuperado a lança no mercado, Dez via que aquele guerreiro não precisava de uma arma para matar. Isso era óbvio por seus movimentos, pelas cicatrizes em suas patas e a intensidade dos seus olhos cor de mel.
— Você corre grande perigo, ladrãozinho. Meu colega aqui acha que você é um espião enviado para interceptar nossa carta e entregá-la aos mantídeos. Eu prefiro achar que você é simplesmente um tolo e que seu pequeno ato criminoso colocou sua vida em perigo de uma forma que você nem imaginava.
O Shado-pan se adiantou e estendeu a pata.
— Rápido, meu mestre está esperando lá embaixo. Me dê o pergaminho. Não faça movimentos bruscos, ou o Tao-Long vai empalar você do nariz à cauda. Faça como eu digo, e eu garanto uma viagem rápida ao Conselho dos Lavradores e uma sentença provável de trabalhos forçados no celeiro.
Dez suspirou profundamente. Ele levou a mão à túnica e retirou o pergaminho. Começou a estendê-lo lentamente na direção do Shado-pan, então parou.
— E… tem alguma outra opção?
O guerreiro do cachecol vermelho franziu o cenho, e sua atitude esfriou.
— Claro, você pode recusar nossa misericórdia e confirmar as suspeitas de Tao-Long. E então nós iremostomar o pergaminho de você, e sua vida também. Mas não pense que isso significa que vamos apenas matá-lo, ladrão. Quando os Shado-pan tomam uma vida, isso significa que essa vida passa a ser nossa. Nós amarraremos você, arrancaremos seus olhos, seus pés, e deixaremos apenas dois dedos para você se alimentar. Então você será jogado em cima de uma montaria e será carregado até o nosso monastério, bem no alto do Monte Kun-Lai. Quando chegar lá, você será colocado em uma beirada coberta de gelo para esperar os nossos Investigadores.
Nesse ponto, o Shado-pan encharcado de cerveja — Tao-Long — sorriu e brandiu levemente a espada. Era evidente qual a opção que ele preferia.
— Os Investigadores Shado-pan mostrarão a você que a remoção dos seus olhos foi só a primeira e a mais gentil de nossas dádivas. Eles descobrirão como você foi corrompido pelo sha, o que você sabe dos planos deles, e decretarão se você deve ou não ser arremessado do cânion para ser julgado pelos ventos cortantes.
Os olhos de Dez se arregalaram, e ele ergueu o pergaminho diante do rosto como se quisesse esconder o medo.
— Eu… eu também não gosto dessa opção.
Cachecol Vermelho deu um sorriso áspero e estendeu a pata outra vez. Dez aproximou o pergaminho enrolado da boca e sorriu de volta.
— Acho que prefiro uma terceira opção.
E então ele soprou o pergaminho. O pó de queima-tripa que roubara de Jin Lao espalhou-se em uma nuvem vermelha que cobriu as faces dos pandarens aglomerados à porta, e o quartinho se encheu com gritos de surpresa e dor. Houve um baque, um barulho alto e então a luz do Sol invadiu o aposento. Dez sumira.
Os Shado-pan não eram dados a entrar em pânico e, após alguns segundos praguejando e cambaleando em meio à nevoa ardida, reorganizaram-se rapidamente no corredor. Cachecol Vermelho recebera a maior parte do pó no rosto, e seus olhos estavam inchados e fechados sob pálpebras avermelhadas e ardidas. Ele pediu a Tao-Long que o levasse até a janela, para lhe descrever o que via.
Tao-Long, embaraçado pela raiva que sentira, levou o companheiro até a janela. Piscando os olhos rasos d’água à luz da tarde, ele descreveu as varas de bambu quebradas que iam desde a janela até lá embaixo. Mais adiante, os galhos partidos de uma árvore taolun e uma trilha aberta às pressas entre os arbustos. Depois… o rio preguiçoso serpeando por entre a aldeia e indo em direção aos baixios. Muitos lugares onde desaparecer. O ladrão sumira.
— Por enquanto — grunhiu Cachecol Vermelho, limpando o nariz, que escorria. — Só até o encontrarmos. E então esse ladrão arrogante vai conhecer os limites da misericórdia Shado-pan.
Ele se afastou e falou aos companheiros:
— Nosso alvo fugiu para as terras moles mais adiante dessa colina patética. Há um agente do sha que fugiu de nossas garras, irmãos. Quem somos nós?
— Nós somos a espada nas sombras.
— E iremos descansar?
— Não falharemos!
O mantra foi sussurrado com paixão fria e certeza inegável. E então, sem outra palavra, os Shado-pan desceram as escadas, saíram da estalagem e sumiram na multidão que se espalhava pelo mercado.
No telhado da estalagem, Dez observou sua partida. Ele se recostou contra o telhado de palha e estremeceu. Eles tinham sido enganados pelo barril que empurrara pela janela, e não pensaram em verificar a laje acima deles. E por que o fariam? Que idiota se prenderia num telhado sem ter para onde fugir quando havia rotas de fuga em todas as direções?
Um idiota pequeno demais para ir muito longe.
Sim, ele tinha escapado, mas agora estava sendo caçado por guerreiros empedernidos que jamais descansariam. A convicção em suas vozes era assustadora. A intensidade. Dez jamais ouvira tanta confiança. Por trás do medo que sentia, havia algo mais.
Admiração?
Outro falcão gritou no céu. Dez balançou a cabeça e respondeu com um suspiro.
— Considere-se sortudo, amigo. Ser um caçador como esses, escolher seu próprio caminho e saber que você o seguirá até o fim…
Ele interrompeu a frase no meio, repleto de desejo frustrado. Aquele tipo de vida jamais estaria ao alcance de um ladrão feito ele.
— O nome dela é Pena Branca — disse uma voz rouca, estranhamente familiar. — E é melhor ser caçador que ser a caça, ladrãozinho. Mas o caçador que sabe se fingir de caça caça melhor e em abundância.
Dez se virou, quase escorregando do telhado. O mercador caolho — não, o Shado-pan caolho — estava sentado no telhado, acima dele, com uma grande lança entre os joelhos. O falcão gritou outra vez e então adejou e pousou no ombro largo do pandaren. Dez tentou falar, mas não encontrava fôlego. A lança… era grande o suficiente para parti-lo em dois. Manejada por um guerreiro experiente que podia pousar no teto de uma estalagem com a rapidez e a furtividade da brisa noturna. Cachecol Vermelho não tinha mencionado… um mestre?
Eu vou morrer.
O mestre Shado-pan franziu o cenho.
— Você tem uma coisa que me pertence. Eu gostaria de pegá-la de volta.
De boca aberta, Dez remexeu na túnica e retirou o pergaminho. Ele o sacudiu, tentando limpar quaisquer resquícios de queima-tripa. Um punhado de pó vermelho foi soprado pela brisa e bateu em cheio no rosto de Dez. Ele soltou um gritinho patético e começou a tossir, com os olhos cheios d’água.
O estranho inclinou-se para pegar o pergaminho, metendo-o entre as dobras de suas vestes pesadas.
— Qual é seu nome, ladrãozinho?
Dez piscou até seus olhos se limparem, e então tossiu de novo.
— Meu nome é Dez, senhor.
— Dez… o número dez?
— Sim, senhor. Meu pai ficou sem ideias para nomes legais depois do quinto filho.
— Muito bem, Dez. A punição por roubar um mensageiro Shado-pan já foi descrita em detalhes por meu tenente. Ele lhe ofereceu uma alternativa misericordiosa, que você literalmente atirou na cara dele.
Dez não tinha certeza se estava enxergando direito, mas pensou ter visto a sombra de um sorriso no canto da boca do mestre Shado-pan.
— Eu não sou tão caridoso quanto Feng, mas talvez isso seja porque eu já estou na muralha há muitos anos. Lutar contra o sha… apenas ficar perto dele… acaba tornando as pessoas insensíveis a aspectos mais gentis da vida. Mesmo se tais aspectos forem os que você está tentando proteger.
Dez não sabia direito do que aquele grande guerreiro com uma lança estava falando — ou o que seria um “sha” —, mas achou melhor ficar quieto e concordar. Ele sentia que sua vida dependia disso.
O mestre Shado-pan cravou o olho em Dez e pareceu cogitar profundamente. Dez tremeu diante do olhar fixo do pandaren. Ele olhou para a lança. A arma era pesada e tinha uma lâmina larga, mas o Shado-pan a segurava sem esforço. Dez tremeu quando a pata do guerreiro apertou o cabo. Fechou os olhos, ainda com a cabeça abaixada.
— Eu lhe dou uma terceira opção, Dez do Pergaminho Apimentado. E uma quarta.
Dez ergueu o rosto, sem saber direito o que estava acontecendo. O Shado-pan se levantou e tocou o peito de Dez com o indicador.
— Eu posso matá-lo agora mesmo como alternativa piedosa à punição descrita pelo leal Feng. Seria rápido e indolor; minha lâmina cortaria seu pescoço antes que você pudesse piscar.
E, rápido como um pensamento, uma ponta brilhante de metal prateado tocou a garganta de Dez. Segundos depois, um sopro de vento seguiu no rastro da lança. Dez estremeceu, e o pequeno movimento contra a ponta da lâmina tirou um fiapo de sangue do seu queixo. O sangue deslizou lentamente pelo cabo da arma, perfeitamente imóvel contra sua garganta. O Shado-pan continuou:
— A outra opção, mais cruel, seria você se submeter à Prova das Flores Vermelhas.
Dez ergueu as sobrancelhas, hesitante, e o Shado-pan abaixou a lança, suspirando.
— Não se deixe enganar pelo nome. A cada sete estações, as árvores sagradas do nosso monastério dão uma florada vermelha. É o sinal para começarmos as provas. Um severo ritual de dor e disciplina que qualifica aqueles que querem entrar para a nossa ordem. O teste mata a maior parte dos que se submetem a ele. E certamente é uma tortura para todos os que desejam ser Shado-pan.
O guerreiro retirou a lança, escondendo-a sob o manto com um movimento rápido.
— Mas — disse, olhando para o vale — se você passar nas provas e se tornar um acólito dos Shado-pan, então a punição por roubar nossa correspondência será esquecida.
Dez não podia acreditar no que ouvia. Eu, um Shado-pan? Ele era um nada. Um ladrão. Um pivete. O décimo filho de um fazendeiro morto. Lutou para encontrar as palavras.
— Mas como você pode pensar que eu posso me igualar a… a Feng? A… a você?
O guerreiro o encarou serenamente.
— Você é rápido, Dez. Rápido com os pés, com as patas e com a cabeça. Um Shado-pan precisa de força, é fato, mas força pode ser incutida. Nosso inimigo é veloz, e, embora precisemos de guerreiros que sejam páreo para o sha em ferocidade, também precisamos de guerreiros que possam se esquivar de ataques, soprar pimenta na cara dos inimigos e fazê-los fugir na direção errada.
Dez assentiu, sem palavras. Algo parecido com esperança adejou no peito magro do ladrão.
Será que eu poderia…?
O grande pandaren retirou um anel do cinto. O objeto tinha um desenho simples, habilmente entalhado em um marfim que lembrou Dez o das pontas do pergaminho. O símbolo da ordem, o tigre rosnando, estava gravado em prata, brilhando como gelo do norte.
— Vejo que você tomou sua decisão. Pegue este anel. Daqui a três meses você deve se apresentar nos portões frontais do Monastério Shado-pan. O anel foi esculpido de uma presa de tigre branco. Ele lhe permitirá passar em segurança por nossos portões; mas sua perícia e argúcia é que farão com que você chegue lá vivo. O Monte Kun-Lai é perigoso, especialmente na estação fria.
“Vá sozinho. Não leve armas nem armadura; elas não ajudarão você. — Ele tocou o tecido fino da túnica imunda de Dez e franziu o cenho. — Mas eu sugiro que você arranje roupas mais quentes.”
Dez assentiu, apalermado, e o Shado-pan soltou a túnica. Sua voz tornou-se ríspida.
— Se as provas começarem e você não tiver aparecido, vou presumir que recusou minha última opção. E os Shado-pan irão acabar com sua vida. E eu garanto, Feng foi brando em sua descrição de nossos métodos. Você entendeu tudo o que eu disse, Dez?
Dez não sabia direito se tinha entendido, e achava que não podia mais usar a cabeça para assentir. Seus músculos do pescoço estavam anestesiados e rígidos. O guerreiro interpretou seu silêncio como aquiescência.
— Eu sou Nurong, mestre dos Wu Kao. Eu o verei daqui a três meses, ladrãozinho.
O Mestre Nurong sussurrou para Pena Branca, e o pássaro alçou voo no ar da noite. Dez voltou-se para ver o falcão sobrevoar os pântanos a nordeste, no rastro dos outros guerreiros. O ladrão finalmente encontrou o que dizer.
— Três meses. Como é que eu vou chegar à montanha mais alta do mundo em três meses, isso sem falar em chegar ao topo dela?…..