Não houve resposta. Dez olhou para trás e se viu sozinho no telhado. O Shado-pan sumira.
Outro gongo ressoou pelo pátio. Dez tentou ficar ereto nas tábuas ondulantes da ponte, tentando parecer imponente perto do resto dos candidatos. Não estava dando certo.
Ele era o menor dos doze jovens candidatos reunidos sob as flores vermelhas, que vibravam rubras contra o fulgor da neve. Mesmo o rapazinho feioso — Wu Tortinho, da Vila Binan, que parecia ser três anos mais novo que ele — era um palmo e meio mais alto que ele, e ainda usava um peitoral de placa como um guerreiro de verdade. Dez olhou para Wu, que o encarou com arrogância. Nenhum dos candidatos estava contente por competir com um pivete sujo feito Dez, como se sua mera presença nas provas fosse uma afronta.
Dez olhou para os pés e fez uma careta. Só chegar ali tinha sido uma prova, e duvidava que algum daqueles filhotes ricos e enormes teria sobrevivido à jornada que ele fizera. Subir o Caminho dos Cem Passos, evitar sauroks famintos na Passagem Antiga e, finalmente, escalar a trilha íngreme e traiçoeira que dava no cume do Monte Kun-Lai, temendo que a próxima rajada de vento fosse empurrá-lo da estrada estreita e arremessá-lo contra as pedras lá embaixo… Isso tendo muita sorte de não congelar antes.
Seu manto flutuava ao vento, e Dez apertou-o ao redor dos ombros. No Vale dos Quatro Ventos, um dia frio não passava de um pouco de chuva e uma brisa fria o suficiente para que as pessoas evitassem o campo aberto. Ali, o frio era letal. Seguindo o conselho do Mestre Nurong, Dez trocara seu cobertor esgarçado e algumas moedas que arranjara por um manto de viagem. O tosco pedaço de tecido remendado salvara sua vida, dando abrigo, calor e até camuflagem nos recessos ensombrados das montanhas quando yetis enormes passavam perto. Seu chapéu de abas largas, fedendo a fruta podre, fora um presente de Den Den como agradecimento por Dez não ter mencionado o estado do seu quarto (ou a boneca de pelos) para ninguém antes de o jovem pandarem ser expulso de Meia Colina. O chapéu o protegia da chuva e da neve, e servia de prato quando ele encontrava algo para comer. E — assim disse Chan Pesado — fazia Dez parecer um cogumelo esturricado.
Chan Pesado era o candidato da cidade mercantil de Barriluno. Era filho de um alquimista abastado, fútil feito um pavão, grande como dez Dezes. Ele chegara com um séquito de serventes grômulos, dos quais nenhum pudera entrar no monastério. Dez lembrava ter passado pelo pequeno acampamento de tendas de seda ao chegar ao cume da montanha. O cheiro de carne assando fizera sua boca se encher de água.
Se eu tivesse um pouco mais de energia e um pouco menos de hipotermia, teria aliviado o acampamento daquele excesso de comida. Chan com certeza não precisa daquilo tudo.
Os candidatos ficaram em silêncio, e Dez ergueu o rosto e viu que os mestres tinham aparecido. Eles estavam diante da ponte, onde o recanto de meditação tocava a margem do lago congelado. Parados como estátuas, os três mestres encaravam os doze candidatos. O sol da manhã brilhava, delineando a névoa que pairava pelo monastério, e ele não sabia se o Mestre Nurong estava entre os três Shado-pan. Dez queria se certificar de que sua presença seria notada e sua vida, poupada. Chegara no último dia, arquejando ao passar correndo pelo silencioso vigia Shado-pan, que acenou e o deixou ir quando Dez lhe mostrou o anel.
Um falcão gritou, e Dez olhou para o céu, apertando os olhos.
— Vamos logo com isso — sussurrou Wu Tortinho. — As flores não vão ficar mais vermelhas do que já estão. — Dez percebeu que os resmungos de Wu eram sinal de nervosismo. Todos os candidatos mostravam sinais de inquietação: mexiam os pés, torciam as patas, mordiam os lábios. Mesmo Chan Pesado remexia sem notar o bracelete de ouro que trazia no braço, um item brega e grande o suficiente pra servir de colar a um pandaren de tamanho normal.
Joia bacana essa, hein.
Um dos mestres se adiantou, e Dez fez uma careta. Não era o Mestre Nurong, mas uma pandarena de cara fechada, com cabelos grisalhos presos atrás das orelhas. A mestra Shado-pan ergueu uma pata e falou; sua voz firme atravessou as águas gélidas e chegou aos candidatos.
— Aspirantes, eu lhes dou as boas-vindas à Prova das Flores Vermelhas. Vocês vieram de longe, e cada um foi selecionado por nossos agentes como um candidato digno. Assim tem sido por incontáveis anos. Assim será sempre.
— Eu sou a Mestra Yalia Sábio Sussurro da disciplina Omnia, e sou a responsável por manter a sabedoria, o conhecimento e as tradições sagradas de nossa ordem. É com prazer que os recebo aqui e louvo sua coragem de aparecer no dia marcado. A Prova das Flores Vermelhas consiste em três testes: o Teste da Determinação, o Teste da Força e o Teste do Espírito. Cada um deles é fatal para os que não forem dignos de se postar sob o pavilhão dos Shado-pan.
Essas últimas palavras foram acompanhadas por uma forte brisa, que se tornou uma rajada; um vento frio que ecoou pelos picos próximos como o rugido de uma fera predadora. Pétalas vermelhas rodopiaram pelo ar como gotas de sangue, e a ponte balançou. Dez apertou mais forte a corrente que servia de corrimão. Wu Tortinho notou seu pânico e sorriu. A Mestra Sábio Sussurro continuou:
— É sua última chance de ir embora. Se algum de vocês questiona sua participação na prova, tem algum resquício de incerteza… eu o convido a sair da Ponte da Iniciação e voltar ao seu lar. Não há desonra nessa decisão, mas ele jamais poderá passar por nossas muralhas novamente.
Houve um instante de silêncio, então alguém pigarreou. Murmuraram-se pedidos de licença, e um — não, dois — dois pandarens se afastaram da ponte. Eram o lenhador alto das Ilhas do Sul e uma garota de ar estudioso do Arado de Pedra. Ambos se afastaram de cabeça baixa. Dez queria poder fazer o mesmo.
Não. Não, eu não quero fazer isso.
Ele se surpreendeu com o pensamento súbito. Será que ele estava contente por estar ali no frio, balançando sobre um lago semicongelado?
Bem… não “contente”. Mas… pelo menos parece ser uma chance de fazer alguma coisa. De ser alguma coisa. Não é possível mudar as estações, mas eu não vou me esconder de um vento favorável.
A brisa fria soprou contra seu manto, e Dez tremeu.
Bom, foi modo de falar.
A Mestra Sábio Sussurro esperou até que os dois pandarens fossem escoltados para fora do pátio, então continuou.
— Agora começa a Prova das Flores Vermelhas. Há Shado-pan entre vocês, aspirantes. É o que esperamos. Nossos números diminuíram nos últimos séculos, e nossos inimigos ficaram mais ousados. Presságios sinistros nos chegam do Templo do Tigre Branco, e os sábios falam do perigo que logo chegará à nossa costa.
— Apesar disso, não somos um exército despreparado, reunido às pressas do povo comum. Nós somos os Shado-pan. Nossos números agora são menores que os de nossos inimigos, mas cada lâmina Shado-pan é páreo para dezenas de soldados comuns. Assim nós rechaçamos os mantídeos. Assim nós expulsamos os yaungóis. Assim mantemos o sha longe. E assim será sempre.
A Mestra Sábio Sussurro apontou para o lago, na direção do outro lado do monastério. Um pequeno braseiro em formato de tigre estava sendo posicionado por um par de acólitos Shado-pan de cachecóis brancos.
— O tigre de fogo testará sua determinação. Em seu ventre, sob os carvões, estão seis moedas de pratas marcadas com o símbolo da nossa ordem. Vocês deverão enfiar a pata na boca do tigre, retirar uma moeda e devolvê-la a mim.
Os dez candidatos restantes olharam nervosos uns para os outros. A garota magricela de Krasarang começou a se afastar do grupo, tentando sair na frente. Em segundos, ela estava presa em um emaranhado de braços enquanto os outros se digladiavam para chegar à margem antes. A ponte sacudiu loucamente, e Dez apertou mais ainda a corrente.
Uma corrida para mostrar determinação? Ela está escondendo alguma coisa.
A Mestra Sábio Sussurro deu meia-volta, e os outros dois mestres já se encaminhavam ao recanto. Olhando para trás, disse:
— Só há seis moedas, e vocês são dez. Eu sugiro que vocês nadem rápido.
Nadem?
Com um clangor, a corrente que segurava metade da ponte se soltou e os candidatos caíram no lago, fazendo buracos no gelo. Eles emergiram tossindo, gritando, e alguém berrou que não sabia nadar. Houve segundos de caos aterrorizante enquanto alguns candidatos se agarravam a outros, que reagiam violentamente com golpes e pragas, tentando evitar ser arrastados para o fundo gélido das águas. Os que estavam usando armaduras vistosas não reapareceram na superfície. Os mais rápidos se livraram das armaduras pesadas e avançaram pelo lago com braçadas rápidas. Sabiam que passar muito tempo no lago seria fatal.
Dez balançava agarrado à corrente, acima deles. Seu nervosismo impedira que ele caísse na água como os colegas. Agora ele estava ficando para trás. Ergueu-se e montou sobre a corrente, perguntando-se se poderia arrastar-se sobre ela até chegar ao outro lado e então simplesmente correr margeando o lago até o braseiro.
Acho que não vão me deixar escapar tão fácil.
Seus temores logo se confirmaram: outro acólito de cachecol branco foi até o final da ponte e começou a desconectar a corrente. Parece que um mergulho no lago era pré-requisito para se tornar um Shado-pan, mas ele sabia que, se a água não o matasse, o vento soprando contra seu fino manto o faria, mesmo que passasse no teste imbecil. Não tinha nem o tamanho nem os recursos que os outros candidatos tinham. Ele tinha que ficar seco.
Aos poucos, foi avançando até o meio da corrente, e então começou a descer até as tábuas dependuradas mais abaixo. A ponte fora construída de forma a poder despencar de um lado e então ser facilmente reconectada após a prova. Inteligente, pensou Dez. Poupa a eles o trabalho de construir outra ponte a cada sete estações.
Por sorte (ou azar), aquela sétima estação tinha caído no meio do inverno. O que significava que o gelo que se espraiava por boa parte do lago era espesso. Talvez grosso o suficiente para aguentar o peso de um pivete. O acólito tinha quase terminado de soltar a corrente, e Dez sentiu a tensão afrouxar. Notou um pedaço de gelo um pouco além de onde estava pendurado, e começou a chutar para diante, balançando toda a ponte para frente e para trás de forma a poder se arremessar e…
A segunda corrente se soltou, e Dez a largou no ponto mais alto de sua trajetória. Ele girou no ar de braços abertos e aterrissou no gelo com uma pancada sólida — e seca. Por alguns instantes, ficou parado, de orelhas em pé para ouvir o menor som de gelo rachando. Nada.
Olhou em volta e viu outro pedaço de gelo próximo. Pulou o vão, aterrissou e quase escorregou. O impulso empurrou o gelo um pouco mais para perto do objetivo, mas ele teve que mexer os braços loucamente para manter o equilíbrio. Havia gelo espalhado por todo o lago, mas seguir tão devagar — e tão desequilibrado — o faria perder, levar um caldo e acabar numa cova rasa na montanha. Ele sabia o que tinha que fazer.
Dez pulou no pedaço de gelo seguinte e, sem parar para recuperar o equilíbrio, curvou-se, aproveitando o impulso, e se arremessou para diante, caindo sobre outro bloco de gelo. E mais outro. Quicando pelo lago como uma pedra arremessada, Dez logo ultrapassou os nadadores e se aproximou da margem oposta.
Seis correntes saíam da água: seis metros de metal enregelado que se erguia até a protuberância rochosa onde o braseiro estava empoleirado. Seria uma subida difícil para qualquer um, e mais ainda para um pandaren ensopado com patas dormentes. Era realmente um teste de determinação.
Infelizmente, os pedaços de gelo estavam ficando menores e mais afastados. Os pés de Dez estavam úmidos, e ele já não conseguia sentir os dedos. Para piorar as coisas, não havia gelo perto das correntes. Com mais dois saltos, ele cairia no lago, e não havia como dar a volta.
Não, não dar a volta. Que nem no mercado: ir por cima.
Erguendo as mãos, ele desfez as amarras do seu grande chapéu. E, ao pular do último bloco de gelo, tirou-o da cabeça e o atirou na superfície do lago. O chapéu pousou na água e, no instante seguinte, Dez pisou sobre ele. Carregado pelo impulso, deslizou pela água com um pé equilibrado no chapéu, que era largo o suficiente para sustentá-lo por alguns poucos segundos antes de afundar. Ele pulou outra vez e se agarrou à corrente que saía da água mais à frente.
Uma das vantagens de ser um cogumelo esturricado.
Dez subiu rápido pela corrente. O pequeno pandaren ainda tinha impulso de sobra da carreira sobre o lago e não era pesado. Assim, ele subiu pela borda da plataforma e correu em direção ao seu objetivo fumegante.
O braseiro fora construído com engenho: um tigre rosnante feito de barras de ferro inclinadas que se tornavam listras negras contra o brilho alaranjado dos carvões. Rilhando os dentes, Dez meteu a pata na boca do tigre, retirando de lá uma moeda incandescente, que chiou ao contato com sua pata. Sendo um ladrão, era mestre na arte de agarrar moedas rapidamente, e a manobra não lhe custou mais que uma bolha na palma, pelos chamuscados e dedos escaldados. Foi passando a moeda de uma pata a outra até chegar a uma pilha de neve próxima. Com um suspiro, enfiou a pata na brancura quebradiça.
Éa primeira vez que eu fico grato por estar nevando!
Ele se virou ao ouvir a corrente ranger atrás de si. O próximo candidato chegara. A garota de Krasarang subiu com esforço e caiu aos pés do braseiro, tremendo violentamente. Ela olhou para Dez com uma expressão confusa e abraçou os joelhos, parecendo uma bola de pelo trêmula.
— Fri-fri-fri-frio-o-o! — gemeu ela, num tom baixo e rouco.
Dez olhou na direção de onde ela viera. Mais três correntes sacudiram-se com a chegada de outros candidatos. Era hora de ir. A rota mais direta seria nadar de volta, mas Dez não gostou nada da ideia. Seu chapéu se fora; seus dedos dos pés estavam congelados; e ele já havia provocado os espíritos do gelo o bastante por um dia. E, assim, deu a volta no lago.
Dez chegou ao recanto sem maiores incidentes e encontrou a Mestra Sábio Sussurro sentada serenamente sob a pérgula no centro. Se ela ficou surpresa ao ver o pequeno candidato aparecer primeiro — e seco —, não demonstrou. Simplesmente estendeu a pata e acenou; Dez entregou a moeda. Sem dizer palavra, ela fez um gesto para que o candidato esperasse em um canto do pavilhão.
O próximo a chegar não foi a garota de Krasarang, mas um rapaz forte, de cabelos longos, que Dez não tinha notado até então. Ele ainda estava pingando, e o braço direito fumegava por causa da boca do tigre. Dez pôde ver que o rapaz demorara a encontrar a moeda entre os carvões: trechos de pelo tinham sido completamente chamuscados ao redor do seu pulso, e havia queimaduras que pareciam bem dolorosas em suas patas.
Mas ele havia conseguido, e logo se juntou a Dez, sem dizer uma palavra, sob o pavilhão. O ladrãozinho julgou que o rosto do seu adversário certamente mostrava determinação. Era assim que um guerreiro lidava com a dor, e Dez sentiu admiração pelo rapaz.
Ele passou no teste. Eu só dei um jeitinho.
A sensação de vitória de Dez agora parecia vazia. Ele ainda era apenas um ladrão.
Depois chegou a garota de Krasarang, batendo os dentes de frio. Dez nem conseguia imaginar o quão estranha e dolorida devia ser a água gelada para alguém acostumado ao calor das selvas do sul. Pelo menos o braço dela estava em melhor estado que o do outro rapaz. Dez imaginou que a sobrevivência na selva devia requerer patas rápidas.
Houve então um rugido, um espirro explosivo, e Chan Pesado chegou ao recanto. O pandaren grandalhão estava mais que encharcado. Tinha conseguido se livrar do luxuoso manto no lago, mas o resto de suas roupas esguichava e espirrava água. Ao se aproximar da Mestra Sábio Sussurro, o nariz, o queixo e a barriga pingavam, e poças formavam-se ao redor dos seus pés grandes. Estava tão ensopado que Dez se perguntou se ele não teria nadado de volta em vez de rodear o lago como os outros. Mais uma vez, a Mestra Sábio Sussurro ergueu a pata.
Chan Pesado também ergueu a pata, e foi então que Dez notou algo que não conseguira ver de onde estava: a pata de Chan estava presa em metal. Tiras de metal no formato de um tigre.
O grande pandaren tremeu e então se curvou diante da Shado-pan.
— Eu não consegui retirar minha pata do tigre segurando a moeda, Mestra. A boca do tigre era muito pequena e quente demais… — Chan Pesado ergueu o rosto e encarou a Mestra Sábio Sussurro com olhos firmes. — Então eu peguei o braseiro e pulei no lago.
Ele espirrou novamente, um som poderoso que sacudiu o recanto. Mais flores vermelhas flutuaram até o chão, e Dez notou que os outros aspirantes estavam olhando para Chan com os olhos arregalados.
Ele nadou mesmo, ida e volta. E carregando um tigre de ferro metade do caminho.
Chan Pesado ergueu o braço e esmagou o braseiro em uma das pedras do calçamento. Já enfraquecido pela água fria, o braseiro se espatifou. Chan depôs três moedas na pata da Mestra Sábio Sussurro.
— Não há mais ninguém depois de mim.
Dez se perguntou quantos teriam se afogado, ou congelado, ou simplesmente desistido quando Chan pegou o braseiro.
A Mestra Sábio Sussurro se levantou e fez sinal para os candidatos a seguirem. Todos deram espaço para Chan Pesado passar, e ele seguiu espirrando água, torcendo as roupas para secá-las mais rápido. Espirrou outra vez, e então viu Dez atrás dele, pulando para evitar as poças.
— Bom trabalho, pivete. Vamos ver se ficar em cima do chapéu vai ajudar você a passar no Teste da Força.
O rapaz de cabelos longos riu, e Dez deu de ombros. Ele passou por Chan Pesado e lhe deu um soquinho amigável no braço.
— Que pena que não tem um teste para ensopamento. Metade do lago está aí nessas suas calças enormes.
Chan Pesado grunhiu e tentou socar o pequeno pandaren, que já esperava a reação e se esquivou facilmente. A garota de Krasarang começou a rir, e Dez fingiu sacudir delicadamente água da mão. O pandaren grande franziu o cenho e espirrou novamente. Mesmo as camadas de gordura isolante não eram o suficiente para mantê-lo aquecido.
Conduzidos pela Mestra Sábio Sussurro, os quatro candidatos passaram por duas grandes portas e entraram em um dojo. Era uma simples arena rodeada de pilares de pedra. Dez podia sentir a história do lugar, séculos de treinamento e disciplina que pareciam fazer parte da própria atmosfera. A mestra Shado-pan despediu-se e retornou em silêncio para o recanto, e os candidatos ficaram sozinhos, olhando para os lados nervosamente e se perguntando qual seria o próximo teste.
Dez notou algo curioso. No centro da arena, havia três sinos enormes. Altos como um pandaren adulto e largos feito a cintura de Chan Pesado, os sinos antigos estavam marcados com palavras de poder. Dez se aproximou, esperando que o teste não envolvesse carregar um troço daqueles.
Uma voz grave falou atrás dos candidatos.
— Vocês mostraram uma determinação digna dos Shado-pan. Agora quero que me mostrem sua força verdadeira.
Dez se voltou e perdeu o fôlego por um instante. À entrada do dojo, estava o maior guerreiro pandaren que ele já vira. Três palmos mais alto que Chan Pesado e com ombros mais largos, o Shado-pan era uma massa de músculos. Seu pelo era totalmente branco, e seus olhos examinavam os candidatos com velocidade predatória, identificando forças e fraquezas.
Dez tremeu, sentindo-se na presença de uma avalanche de poder marcial letal.
— Eu sou o Mestre Wan Monte de Neve da disciplina Guarda Negra. Os guerreiros Shado-pan respondem a mim, assim como eu respondo ao Lorde Taran Zhu. Eu conheço todos os guerreiros que moram aqui, e testei minha lâmina contra cada um deles. Se sobreviverem às provas e se tornarem Shado-pan, vocês algum dia baterão espadas comigo, pois não se conhece verdadeiramente uma pessoa até se ter combatido com ela.
Nesse ponto, o Mestre Monte de Neve cerrou um punho potente, e o estalar dos nós dos dedos ecoou pelo dojo como pedras rolando. Dez fez uma careta.
— Mas esse dia não é hoje. Vocês são jovens e despreparados. Um aspirante ainda não é uma arma, e sim uma barra de ferro crua esperando pela forja. é aqui que o ferro mostra sua força antes de ganhar um fio.
Ele caminhou até os três sinos, e o porte sereno do mestre fez Dez pensar em um tigre à espreita.
— Vocês estão diante de artefatos sagrados, relíquias de séculos passados, criados com magia e metalurgia para resistir aos ataques do tempo. Cada um foi fabricado de forma a ressoar uma nota perfeita ao ser tocado.
Ele bateu de leve no sino mais próximo, que produziu um som abafado.
— Impressionante, não? — O Mestre Monte de Neve sorriu. — O sino não irá repicar até ser erguido no ar e percutido com alguma ferocidade. É parte da magia.
Dez fez uma careta. Levantamento de sino gigante definitivamente não fazia parte do seu repertório… e… teria ele ouvido um som abafado dentro do sino? Um sibilar?
O Mestre Monte de Neve continuou: — Embaixo de cada sino há um tipo diferente de morte, aspirantes. A morte que rouba, a morte que esconde e a morte que salva. Eu esperarei no recanto até que os três sinos tenham repicado, e então eu retornarei. Quem for forte o suficiente para sobreviver passará para o próximo teste.
Chan Pesado espirrou, e o mestre Shado-pan fez um gesto para o candidato ensopado.
— Esta sétima estação está sendo especialmente fria, e eu sei que vocês estão cansados. Vamos começar.
Com um movimento suave, o Mestre Monte de Neve girou e chutou o sino atrás de si, que voou e bateu contra um pilar do outro lado da arena. O pilar rachou, e fragmentos de pedra caíram no chão. O sino rolou pelo assoalho, incólume.
O Mestre Monte de Neve caminhou na direção da porta. Os candidatos o observaram sair, em admiração atônita.
— Eu não espero que lutem bem — disse ele. — Mas espero que lutem.
As portas se fecharam e o trinco travou.
— Ali! — gritou o rapaz de cabelos longos, com horror na voz.
Dez se voltou e arquejou. Onde o sino estivera, enrodilhava-se uma enorme cobra. Que se ergueu sobre músculos potentes, alçando-se sobre os candidatos.
— Uma píton bambu! — gritou a garota. — Para trás! Ela vai atac…
Como um raio verde, a cobra atacou. Derrubando o rapaz de cabelos longos, a serpente enfiou as presas em seu ombro. O rapaz gritou e tentou bater na cabeça escamosa do réptil, mas ele se agarrava tenazmente, enrodilhando-se e apertando-o com força. Os três outros candidatos se afastaram do alcance da criatura, procurando onde se esconder. Como quatro jovens desarmados e sem treino poderiam derrotar uma fera tão letal?
A garota de Krasarang estava praguejando, e Dez ouviu os sussurros zangados ao seu lado.
— Eu sei matar esse bicho. Se pelo menos eu tivesse minha lança. Por que não me deixaram trazer minha lança? Eu podia salvá-lo!
A morte que salva.
— Chan Pesado! — gritou Dez. — Eu acho que talvez tenha armas escondidas em um dos sinos! Rápido, olhe embaixo deles!
O grande pandaren olhou para Dez como se ele estivesse louco.
— Bela tentativa, pivete. Você acha que eu vou chegar perto?
Ele apontou para os dois sinos remanescentes, logo atrás da serpente enrolada em sua presa. Bem ao alcance do ataque dela.
— Além do mais — gritou Chan Pesado —, como é que você sabe que tem armas ali?! Podem ser mais cobras!
O rapaz de cabelos longos parara de se debater e a serpente o sacudiu uma última vez antes de se desenrolar e se erguer novamente. Era recoberta de escamas cor de esmeralda e tinha olhos negros e frios. Longas presas pingavam sangue e saliva hedionda, que empoçavam no chão de pedra. Dez olhou para o rapaz morto no chão e viu duas marcas vermelhas rasgadas em seu ombro. Ele se surpreendeu com o tamanho delas.
A morte que rouba — veneno, ou algum fluido tóxico dos pântanos. Entra furtivamente em seu corpo por pequenas portas e vai embora levando sua alma.
Um ladrão.
A serpente agora deslizava na direção da garota de Krasarang. Ela chegara à parede da arena e não tinha mais aonde ir.
Dez sabia que não conseguiria passar no teste se os outros morressem. Não conseguiria erguer um sino sozinho. Foi uma constatação esquisita: ele precisava dos outros.
— Chan, você tem que confiar em mim, ou vamos todos morrer. A píton é a morte que rouba. Um desses sinos contém a morte que salva. Acho que são armas — ferramentas de matar, que podemos usar para nos salvar.
Dez fechou os punhos e correu em direção à fera sacudindo os braços. A criatura sibilou e se afastou da garota.
— Eu distraio a cobra e a afasto dos sinos! — gritou ele. — Bata neles! Preste atenção em qualquer som que vier de dentro!
A píton agora serpeava atrás de Dez, e ele teve que começar a correr. E se ele tentasse se esquivar entre os pilares? Ao olhar para trás, viu que Chan Pesado e a garota já estavam indo até os sinos enquanto a criatura o perseguia.
A cobra era mais rápida do que ele imaginara; Dez achou que não chegaria aos pilares a tempo. O sino que o Mestre Monte de Neve tinha chutado estava tombado mais à frente, e o ladrão pulou para se proteger atrás da parte bojuda enquanto mandíbulas se fechavam com força a centímetros do seu calcanhar.
Dez deu a volta e encarou a píton. O corpo enorme erguia-se diante dele, e a proteção do sino parecia insignificante naquela posição. A cobra atacou outra vez, e Dez mal conseguiu esquivar-se do borrão de escamas e presas. Atrás da fera coleante, ele viu Chan Pesado batendo em um sino. A garota da selva encostava a orelha na superfície de cobre com uma expressão atenta.
E então Dez compreendeu que seu plano tinha uma falha: ele estava armando dois rivais que iriam esperar que a píton o matasse e, então, com um competidor a menos, terminariam a prova com menos um concorrente.
Chan Pesado olhou para Dez e sorriu, dando tchauzinho. Ele abraçou um dos sinos e começou a empurrá-lo.
Dez rilhou os dentes, mas não podia culpar os outros aspirantes; o teste era de sobrevivência, não de popularidade. Mas queria ser mico de circo se deixasse aqueles dois se tornarem Shado-pan por cima do seu cadáver mirrado.
Ele correu até a boca do sino e se postou bem à frente da cobra gigante. Ela se afastou um pouco, surpreendida por aquela audácia, e sibilou de raiva.
Sendo ladrão, Dez aprendera a perceber os tiques das suas vítimas, uma expressão, gesto ou movimento que indicava que o alvo estava prestes a atacar. Aquilo salvara sua vida inúmeras vezes nas ruas.
A píton tinha um tique. Dez vira quando ela atacara o rapaz de cabelos longos, e depois quando ela o atacara. A serpente estirava a língua segundos antes de atacar, como se saboreasse o medo da vítima antes do abate. Dez observou o gingado hipnótico da cobra com as pernas dobradas, pronto para pular e atento ao menor movimento da língua — agora!
Dez saltou e a píton atacou. Para azar da fera, o impulso a fez avançar pela boca do sino ancestral adentro, e ela bateu o crânio com força contra o cobre robusto, produzindo um som belo e puro.
Um toque.
Dez aterrissou sobre as costas da criatura e saiu rolando, esquivando-se das espirais musculosas que estertoravam enquanto a cobra tentava tirar a cabeça do sino.