Ele se reuniu com os outros dois aspirantes a tempo de ver a garota de Krasarang retirar uma lança de sob o sino, rindo alto. Dez se agachou para ver o que mais havia ali — a morte que salva, de fato! Viu uma pilha de armas simples, mas afiadas, enfileiradas no chão: uma espada, uma maça, um machado e uma adaga. Apressou-se e os retirou de debaixo do sino inclinado, pegando a adaga para si. Ele se ergueu e usou o pesado cabo da arma para percutir um golpe contra a lateral do sino, usando toda sua força. Uma nota pura ecoou pelo dojo.
Dois toques.
Chan Pesado praguejou e mandou que pegassem uma arma para ele, pois não aguentaria segurar o sino por muito mais tempo.
— É para já — disse Dez, empurrando o machado para o aspirante.
— Já era tempo! — Chan ofegava com o esforço. — Cuidado com o sino!
E, dizendo isso, soltou o artefato, que bateu no chão com um clangor pesado, deslocando o ar.
Chan Pesado ergueu o machado com um sorriso. A garota de Krasarang sorriu de volta, manuseando a lança.
— Era isso que eu estava esperando — disse Chan Pesado. — Vamos mostrar para esse bicho como é que se mata bem matado.
Uma voz abafada veio de dentro do sino.
— Boa sorte para vocês, hein, gente!
Chan Pesado estacou e o sorriso sumiu de seu rosto.
— Cadê o pivete?
A garota de Krasarang deu de ombros.
— Só tem um lugar onde ele pode estar — disse ela.
Chan Pesado bateu contra a superfície polida, impenetrável e inexpugnável do sino.
— Que sua família seja mil vezes amaldiçoada, pivete desprezível! Você não tem vergonha? Que covarde imundo você é!
— Um covarde vivo, você quer dizer, Chan Pesado. Escute bem: a píton logo vai sair do sino. Ela é mais rápida do que você imagina. Observe a língua dela — ela estira a língua imediatamente antes de atacar.
Dez se recostou contra a parede fria do sino e ouviu enquanto os dois aspirantes discutiam sobre o que fazer com ele. No final, a serpente decidiu pelos dois. Dez ouviu gritos e sibilos. Um berro, um rugido.
Rapaz, que bom que estou aqui dentro.
Ele esperava que, agora que os outros candidatos estavam armados, a perícia das selvas da garota combinada à força de Chan Pesado bastassem para matar a fera. Houve mais gritos e outro sibilo. Ele ouviu algo caindo no chão, e um longo silêncio se seguiu. Então, alguém deu batidinhas no sino.
— Píton? É você? — respondeu Dez.
A voz de Chan Pesado indicava cansaço e fúria.
— A cobra está no chão do dojo, cortada em vários pedaços, pivete. Agora Pei-Ling e eu vamos derrubar o terceiro sino, completar o teste e deixar você para apodrecer dentro do seu esconderijo de metal. Ou quem sabe eu volte aqui depois de me tornar um Shado-pan e jogue outra serpente aí dentro para lhe fazer companhia.
Dez ouviu a garota de Krasarang (parece que Pei-Ling era o nome dela) rindo da ideia.
Mas que beleza. Eu arrumo armas e salvo a vida deles, e eles me odeiam.
Ele já estava acostumado com aquilo. Tinha sido a mesma coisa com o pai, os irmãos, os outros ladrões com quem convivia. Por que deveria esperar outra coisa daqueles aspirantes?
Não é possível mudar as estações.
Dez bateu no sino.
— Chan Pesado, olhe seu pulso. Acho que você perdeu alguma coisa.
Houve mais alguns segundos de silêncio e, em seguida, um grito de raiva.
Ladrão! Degenerado! Masca-raiz imundo amiguinho de hozen!
Os insultos continuaram assim por um bom tempo, então houve outro baque surdo. Era Chan Pesado que atracava-se ao sino.
— Esse bracelete foi um presenta da minha mãe, seu sapo deformado. Saia daí e me devolva ele agora!
Houve um grunhido, um espirro, e o sino começou a se inclinar. Dez saiu rolando de debaixo dele e deu de costas contra o terceiro sino. Pei-Ling estava sentada no chão, limpando o sangue da lança. Ela olhou para Dez e o saudou ironicamente, voltando a concentrar-se na arma. Dez ficou confuso. Ele jamais vira aquilo antes, nem de brincadeira.
Um sinal de respeito.
Chan Pesado derrubou o sino e se virou, bufando e tremendo tanto que mal podia erguer o machado. Tinha sido ferido na batalha, e uma perna de suas calças estava ensanguentada e rasgada como se ele tivesse sido arrastado pelo chão de pedra. O ferimento, nadar no lago gelado, ficar levantando os sinos… aquilo custara muito ao aspirante, e parecia que ele ia ficar resfriado. Mas a raiva de Chan Pesado o fazia avançar.
— Quero o bracelete, pivete — disse. Ele bateu o machado contra o sino, e Dez fez uma careta quando faíscas voaram com o golpe desajeitado.
— Calma, Chan. Aqui está sua bijuteria…
— Me dá isso agora!
Quando Chan gritou, o chão tremeu em uma onda sinuosa e atordoante que se espraiou em onda a partir do terceiro sino, derrubando o grande pandaren no chão. Crendo tratar-se de algum truque de Dez, ele rugiu e ficou de joelhos.
— Pivete sujo! Ninguém rouba de Chan Pesado!
Pei-Ling gritou, apontando para o sino. Isso finalmente chamou a atenção de Chan, e ele se voltou com as sobrancelhas erguidas.
O sino estava sacudindo, indo de um lado para o outro. Houve um som de impacto, de metal sendo retorcido, e um rugido borbulhante…
… seguindo pelo som alto de alguma coisa se rachando. O último sino se partira ao meio. As magias ancestrais que o tinham protegido por tantos séculos dissolveram-se em fiapos vibrantes de energia brilhante quando uma garra negra destroçou o bronze espesso. As duas metades do sino caíram no chão com um clangor sincopado, revelando uma forma bruxuleante de fumaça e chamas negras.
Não, isso está vivo. É um monstro.
Parecia ser feita de pesadelos, uma sombra encarnada. Dez olhou com mais atenção e tremeu. A coisa horrenda estava agachada sobre o cadáver de um tigre, e foi então que Dez compreendeu que algo dera errado.
Era para o tigre ser o inimigo. A morte que se esconde, um caçador furtivo. Não essa coisa.
Ele se lembrou de que o Mestre Nurong mencionara um inimigo do qual Dez jamais ouvira falar antes — o “sha”. O que o Shado-pan tinha dito mesmo?
Apenas ficar perto dele… acaba tornando as pessoas insensíveis a aspectos mais gentis da vida.
Ele rastejou até Chan Pesado e Pei-Ling, tentando empurrá-los para longe do tal sha. Ambos estavam paralisados de horror, e Dez notou que a criatura parecia crescer junto com o medo deles. Agora ela pulsava, movendo-se em sincronia com a respiração apavorada dos aspirantes. O sha já estava maior que os três juntos, e novas garras e tentáculos brotavam a cada segundo. O monstro não parecia disposto a atacar enquanto se alimentava do medo deles. Dez sabia que aquilo não duraria muito.
— Olhem para mim! Vocês dois!
Os dois olharam para Dez com a expressão transida de horror. Eles tinham treinamento em combate, sim, mas jamais enfrentaram um inimigo tão sombrio. Uma coisa era conhecer os caminhos da batalha. Outra bem diferente era conhecer os do medo.
Dez conhecia o medo. Ele pegou a adaga e a ergueu diante deles.
— Escutem! Nós não somos crianças assustadas. Nós somos Shado-pan. Nós cruzamos um lago de gelo; pegamos as moedas incandescentes; e matamos a morte que rouba. Esse é o nosso teste, nossa chance de provar nosso valor e entrar nas fileiras dos que caçam o mal. Nós podemos fazer isso.
Os outros dois aquiesceram, ganhando coragem com as palavras de Dez. O ladrão tirou o bracelete de dentro da túnica.
— Tome, desculpe por ter roubado de você, Chan. Eu acendi a raiva que alimentou esse bicho.
Chan Pesado olhou por sobre o ombro de Dez e estacou com uma expressão curiosa no rosto.
— O monstro. Ele encolheu quando você se desculpou.
Como se em resposta, um rugido partiu do sha, que começou a rastejar pela arena em direção a eles. Dez fez uma careta.
Oops. Talvez não tenha sido uma ideia muito boa.
Dez ajudou os candidatos a se levantar e eles recuaram tropeçando, afastando-se do sha. Ele sussurrou uma ordem rápida a Pei-Ling, e ela o saudou novamente antes de ir até o lado do monstro, que rugiu ao ver suas presas se dividindo. O sha decidiu se concentrar nos dois pandarens que tinha logo à frente.
Ao se afastar, Dez tirou o manto de suas costas e o ofereceu a Chan Pesado, que ainda estava todo ensopado.
— É melhor eu te dar isso também. Amarre na perna para parar o sangramento.
Chan Pesado pensou por um instante e estendeu a pata para o ladrãozinho. Dez sentiu a mão dele úmida e fraca.
— Eu… estou apavorado como nunca estive, pivete. Isso é um pesadelo. Mas eu sei que você vai encontrar um jeito de vencer esse obstáculo… assim como você correu por cima do lago. Fique com o bracelete; até minha mãe diria que você o mereceu.
Dez guardou o bracelete na túnica e apertou a mão de Chan o mais forte que pôde.
— Controle seu medo. Ande ao redor do monstro enquanto eu me aproximo. Não ataque.
Dez soltou a pata do aspirante e voltou-se para encarar o sha.
— E o meu nome é Dez.
Com um sorriso sinistro, Chan Pesado amarrou o manto na perna e se afastou. O monstro rugiu e partiu para cima dele. Dez se apressou, correndo na direção do sha com a adaga em riste. O sha se voltou para enfrentá-lo com garras e tentáculos erguidos. Dez encarou a coisa horrenda calmamente, ou pelo menos com o que ele esperava que parecesse calma.
— Seu lugar não é aqui, monstro.
O sha se aproximou com os tentáculos sombrios prontos para o ataque.
— O monastério é um lugar de meditação e estudo. Sua intrusão aqui vai contra…
Com um rosnado, o sha atacou Dez com um par de tentáculos do tamanho de galhos de árvore que assobiaram no ar como chicotes monstruosos. Nem mesmo Dez pôde se esquivar deles, e o golpe o arremessou longe.
Ok, isso doeu para caramba.
Dez se ergueu morrendo de dor. Quebrara uma costela, e um fio de sangue escorria de sua boca. Não perdera a adaga, e a ergueu com esforço enquanto o sha ia em sua direção.
— Eu sou órfão desde os sete anos. Eu dormi em esgotos e lutei contra bichos imundos disputando comida. Eu me abriguei da chuva em becos sujos entre ladrões e assassinos.
O sha rugiu e atacou mais uma vez. Dez caiu para trás novamente e sua adaga quicou pelo chão de pedra. Outra costela quebrada. Será que ele aguentaria ficar de pé? Ele precisava. Gemendo, ergueu-se lentamente. Muito sangue lhe descia pela face.
— Você acha que eu não sei o que é apanhar, monstro? Não faz muito tempo, eu fui espancado por um açougueiro por roubar o lixo dele… e por um ferreiro, por tentar esquentar as patas na forja.
Um tentáculo grosso estalou, envolvendo-o e apertando com força. O sha arrastou Dez para perto de sua boca cheia de presas. Dez perdera a daga, e, remexendo na túnica com a pata livre, sentiu o toque frio e sólido do bracelete de Chan Pesado.
— Eu vivi à sombra da fome, da dor e da morte a vida inteira — rugiu o ladrão. — Você não me assusta.
Ele bateu com o braço na cabeça sha, e o grande bracelete dourado de Chan estourou um dos olhos brilhantes da criatura. O sha guinchou e derrubou sua vítima, recuando espasmodicamente com os tentáculos coleando de agonia. Dez se ajoelhou, cuspindo sangue. O sha agora não era muito maior do que ele.
— Agora, Pei-Ling! — gritou, esperando que os urros do monstro não abafassem sua voz. A garota de Krasarang surgiu das sombras com a lança em riste. Ela a enfiou no sha, usando a força do impulso para empurrar a criatura para longe de Dez, em direção a Chan Pesado, que aguardava perto do primeiro sino.
— O sino, Chan! — gritou Dez, tentando se erguer. Ele orou para que o grande pandaren ainda tivesse forças para realizar um último esforço.
Chan Pesado assentiu, já adivinhando o plano de Dez. Ele se agachou, abraçou o sino e, com um estrondoso rugido, ergueu-o no ar.
Pei-Ling empurrou o sha para junto de Chan Pesado a toda velocidade. O monstro estava enlouquecido de dor, e seus tentáculos e garras se sacudiam cegamente em abandono. Acertou a garota, arrancando sangue de seus ombros e braços.
Com um grito, ela arremessou a lança — e o sha — bem dentro do sino. Chan Pesado cambaleou para trás com o impacto e grunhiu ao bater com a boca do sino no chão outra vez. O chão estalou com o peso.
O sino sacudiu com a agitação furiosa dos tentáculos presos sob a sua boca. Chan Pesado puxou o machado do cinto e começou a decepá-los um a um. Pei-Ling se juntou a ele, usando o pé para prender os tentáculos no chão enquanto o machado subia e descia.
Dez cambaleou até eles, segurando firme o flanco dolorido.
— Isso vai segurar o monstro se mantivermos as emoções sob controle.
Pei-Ling deu uma risada áspera.
— Acho que isso não vai ser problema — disse.
Dez e Chan Pesado olharam para o chão. O sino aquietara-se. Um fluido escuro borbulhava e fumegava nas rachaduras do chão. Dez limpou o sangue da testa para impedir que lhe chegasse aos olhos.
Vamos tentar fazer soar os pedaços do terceiro sino. Acho que nós passamos no Teste da Força.
A Mestra Sábio Sussurro e o Mestre Monte de Neve estavam discutindo serenamente no terraço que dava para o lago congelado; suas expressões eram igualmente serenas. Era assim que os Shado-pan discutiam, pensou Dez, e depois da luta com o sha, fazia sentido. O ladrãozinho se inclinou, tentando ouvir o que eles diziam, mas as palavras dos mestres se perdiam no vento frio. O movimento fez com que suas costelas, ainda não totalmente curadas, doessem. Dez fez uma careta e sentou-se novamente.
Houvera algum alarme com a descoberta de um sha no monastério, e os aspirantes foram interrogados repetidas vezes sobre o que acontecera. Agentes Shado-pan foram enviados para investigar o que houvera de errado. Enquanto esperava na enfermaria, Dez soubera que o tigre esperando sob o terceiro sino fora enviado como tributo pela aldeia de Gruta Galhareda, mas parecia que nenhum dos aldeões sabia nada sobre o presente. Dez ouvira os acólitos sussurrando sobre uma conspiração dos mantídeos, ou mesmo mogus. Independentemente disso, alguém tentara corromper a prova das Flores Vermelhas e macular a sagrada tradição Shado-pan. Pelo que Dez tinha entendido, as coisas podiam ter sido bem piores. Se o sha tivesse matado os aspirantes, poderia ter-se escondido facilmente no monastério e começado a corromper os Shado-pan em seus pontos mais vulneráveis. Ninguém teria suspeitado de nada; afinal, aspirantes morriam em toda prova.
Ou seja: Dez, Pei-Ling e Chan Pesado eram heróis.
Dez olhou para Pei-Ling, ajoelhada ao seu lado. Ela estava usando o uniforme de acólito, e o cachecol branco realçava o pelo coberto de neve de suas orelhas. A garota de Krasarang sorriu e acenou para o grande vulto ajoelhado ao lado dela. Chan Pesado também usava o uniforme de acólito, mas com um manto sujo e esgarçado no lugar do cachecol. O ladrãozinho revirou os olhos; pelo jeito Chan Pesado jurara usar o manto de Dez como símbolo de honra pelo tempo em que fosse um Shado-pan.
Se é que somos mesmo Shado-pan.
E esse era o motivo pelo qual os três tinham sido convocados. Parecia estar havendo algum debate sobre se eles mereciam ou não um lugar na ordem. Depois de todo o interrogatório, Dez, Chan Pesado e Pei-Ling receberam a visita do Mestre Monte de Neve enquanto se recuperavam na enfermaria. Fora ele que os cumprimentara por sobreviver a um teste que não teria dado nem aos seus alunos mais avançados. Disse que estava orgulhoso da força dos aspirantes e que não haveria mais testes para provar que eles eram dignos da ordem. Quando os três estivessem curados e prontos, poderiam começar o treinamento no dojo. Acólitos apareceram atrás do Mestre Monte de Neve, curvando-se ao apresentarem os uniformes para os aspirantes.
No dia seguinte, a Mestra Sábio Sussurro retornara com mais acólitos. Ela agradeceu aos aspirantes por sua bravura, mas disse que a tradição pedia três testes, e assim, a Prova das Flores Vermelhas não tinha sido completada. A intrusão do sha fora infeliz, mas proporcionara um valioso treinamento de combate e certamente servira como teste de força. Não era, repetiu, um teste de espírito. Será que ela deveria aprovar os aspirantes que tinham congelado no lago só porque aquele estava sendo um dos invernos mais frios da história? Seus acólitos então removeram os uniformes de Dez, Chan Pesado e Pei-Ling, curvando-se para os aspirantes ao saírem. No dia seguinte, o Mestre Monte de Neve devolvera os uniformes. Isso durara uma semana.
E agora todos estavam ali esperando. Os dois mestres se viraram e retornaram para onde estavam os aspirantes, ajoelhados. A Mestra Sábio Sussurro ergueu a sobrancelha.
— Eu peço perdão por nossa inconstância, jovens pandarens. Tenho certeza de que o Mestre Monte de Neve também pede desculpas. É isso o que acontece quando se abandona a tradição: caos.
O Shado-pan maior curvou a cabeça em reconhecimento, e a sombra de um sorriso despontou em seu rosto ao pedir que ela continuasse.
— Nós passamos a manhã debatendo sobre tradição versus pragmatismo, e chegamos a um consenso. Nós decidimos que… não cabe a nós tomar essa decisão.
Nesse ponto, a Mestra Sábio Sussurro se afastou e o Mestre Monte de neve tomou o lugar dela.
— A decisão sobre um terceiro teste deve ser tomada pelo Shado-pan responsável por ele. Infelizmente, ele partiu logo depois do seu encontro com o sha. Era seu dever; como mestre do Wu Kao, assuntos que dizem respeito ao nosso inimigo hediondo estão na jurisdição dele.
Um falcão gritou, e Dez sorriu. Ele conhecia aquele som.
— Eu agradeço sua paciência, caros colegas.
O Mestre Nurong adentrou o terraço. Suas botas estavam pesadas com a neve e seu manto trazia sinais da viagem. Dez notou marcas castanho-escuras em sua manga. Em uma pata o mestre Shado-pan carregava uma grande besta; na outra, uma sacola. A lança que Dez conhecera no telhado meses antes estava presa às suas costas. O Mestre Nurong atirou a sacola aos pés do Mestre Monte de Neve e da Mestra Sábio Sussurro.
A sacola se abriu e três cabeças rolaram pelo chão de pedra. De início Dez, pensou que fossem crânios; depois notou os olhos bulbosos de insetos. As mandíbulas serrilhadas.
Mantídeos.
Cada cabeça fora perfurada por um tiro de besta no olho, e a Mestra Sábio Sussurro ergueu uma delas com uma expressão de curiosidade acadêmica.
— Eu rastreei esses assassinos em seu covil escondido, perto de Galhareda — disse o Mestre Nurong. Sua voz era calma e profunda, como Dez se lembrava dela. — Eu não descobri nada com eles; espiões mantídeos não falam sob tortura. Eu removi seus membros mesmo assim, para me certificar.
O Mestre Monte de Neve aquiesceu, depois acenou para um acólito que se posicionava perto da muralha mais afastada. Ele se apressou em enfiar as cabeças na sacola, pegando a que a Mestra Sábio Sussurro segurava e fazendo uma mesura.
— Bem, agora sabemos de onde partiu o ataque, ou pelo menos temos fortes provas de sua origem — disse a Mestra Sábio Sussurro. — Infelizmente isso não mudará nossas táticas ao longo da muralha. Nós fortificaremos onde pudermos, mas nossas forças ainda estão em desvantagem.
O Mestre Nurong sorriu e, pela primeira vez, olhou para os aspirantes.
— Pelo menos temos três novos e capazes membros em nossa ordem, ou logo teremos, se eles passarem pelo teste final.
O Mestre Monte de Neve pigarreou, franzindo o cenho. — Eu imaginei que você mais do que ninguém ficaria impressionado com a coragem que esses jovens aspirantes demonstraram ao destruir um sha. Existe outra maneira de testar o espírito Shado-pan?
O Mestre Nurong respondeu com convicção: — Eu estou impressionado. Pelo que ouvi, os aspirantes demonstraram coragem, força e… inteligência considerável. — Ele acenou para Dez, que piscou sem jeito e abaixou a cabeça.
— Mas a tradição demanda três testes. E três testes é o que teremos antes que os aspirantes sejam admitidos aos Shado-pan.
A Mestra Sábio Sussurro fez uma mesura, e sua expressão estava plácida (talvez o mais perto que ela conseguia de um sorriso). Deu um passo para trás e o Mestre Nurong se juntou a ela diante dos três jovens pandarens. O Shado-pan caolho cruzou os braços.
— Aspirantes, de pé.
Dez, Pei-Ling e Chan Pesado se levantaram.
— Eu sou o Mestre Nurong da disciplina Wu Kao. Os Wu Kao são batedores, caçadores, espiões e assassinos. Nós somos a morte nas sombras e ensinamos os monstros a temer a escuridão.
— Vocês passaram pelo primeiro teste e foram marcados por sua determinação. Olhem para suas patas: vocês carregam nosso sinal.
Os três aspirantes olharam e viram as cicatrizes circulares em suas palmas, que tinham acabado de sarar. As marcas tinham a forma do desenho impresso nas moedas: a cara de um tigre. Dez viu que Chan Pesado estava sorrindo.
É claro. Ele tem três.
O Mestre Nurong continuou: — Vocês passaram pelo segundo teste e foram marcados por sua força. Essas cicatrizes são mais numerosas, e eu asseguro que inúmeras outras se juntarão a elas se vocês entrarem para a ordem.
Dez passou a mão na bandagem em sua cabeça e assentiu solenemente.
— Vocês derrotaram um inimigo que somente nossos soldados veteranos ousam enfrentar. Vocês testemunharam o horror do sha e sentiram a presença sombria da criatura em seus corações e mentes. E embora sua coragem e força tenham salvado suas vidas, o custo da batalha foi maior do que vocês pensam. Há um motivo para não mandarmos guerreiros destreinados para enfrentar esse inimigo.
“Assim que a batalha começou, o sha conheceu e marcou vocês. E quando o sha deixa sua marca em alguém, essa marca nunca desaparece. Cada encontro que vocês tiverem com ele a partir de agora será mais difícil e aterrorizante. O sha conhece vocês agora. E conhece suas mentes, suas fraquezas, seus medos.”
E Dez compreendeu que ele realmente sentira medo. Medo como ele jamais sentira antes. O que o Mestre Nurong disse era verdade: ele fora marcado. Dez conteve um arrepio e olhou para os mestres com uma expressão angustiada nos olhos.
Os rostos deles eram impenetráveis. O Mestre Nurong fechou o olho.
— E agora chegou a hora do terceiro e último teste.
“Os sha são o poder coletivo de todo o medo, ódio e mal em nossa terra. São um inimigo que não demonstrará piedade e nunca se cansará. Eles manipulam os mantídeos e fazem com que os yaungóis ataquem nosso povo. Como Shado-pan, é o nosso dever destruir o sha. Nós somos a espada e o escudo contra o terror deles, a única linha de defesa contra o mal que eles desejam causar em Pandária.
“Ao entrarem para nossa ordem, vocês estarão escolhendo combater o sha de novo. E de novo. Pelo resto das suas vidas. Nós treinaremos vocês para destruí-los, e nós armaremos vocês contra o medo, mas uma coisa apenas é certa: o sha jamais irá desaparecer.
“Seu último teste é este: fazer o juramento de lealdade aos Shado-pan. Sabendo o que vocês sabem, e com as cicatrizes que carregam. Vocês se unirão a nós?”
De repente, Dez sentiu frio, um frio que veio do fundo dos seus ossos.
Enfrentar o sha de novo? Nós… nós mal sobrevivemos dessa vez. E agora ele me conhece? Eu não posso fazer isso de novo… não posso encarar o medo, não vou aguentar ser esmagado outra vez.
Uma brisa soprou no terraço, e Dez estremeceu. O vento frio da maldita montanha fazia suas costelas doerem. Dez olhou para a pequena cicatriz em sua pata. Pensou em voltar para Meia Colina, para o seu lar nos becos.
A vida lá não era tão ruim assim. Eu sobrevivia, não é? Eu me saía bem como ladrão.
Um ladrão.
Pena Branca gritou do alto céu azul. E Dez percebeu que aquele título não mais lhe servia. Tinha ficado pequeno demais.
Não é possível mudar as estações.
Dez se postou diante do Mestre Nurong e tomou-lhe a pata.
— Eu farei o juramento e me unirei aos Shado-pan, Mestre Nurong.
Pei-Ling se postou ao lado de Dez. Chan Pesado também.
— Eu farei o juramento, Mestre Nurong.
— Eu também.
A Mestra Sábio Sussurro fez uma careta e se adiantou, colocando a pata no ombro largo do Mestre Nurong.
— Mas eles não podem jurar e esperar que isso seja o teste! O juramento só pode ser feito depois de se passar no teste. Isso vai contra séculos de tradi…
— Você não me ensinará o meu trabalho, Yalia!
As palavras fortes do Mestre Nurong ecoaram no terraço, sua voz carregando um tom não de raiva, mas de aviso perigoso. A Mestra Sábio Sussurro se afastou, sua expressão agora vazia.
— A tradição manda que o mestre Wu Kao arbitre o último teste. Eu fiz isso. Estes aspirantes escolheram servir seu povo, sabendo muito bem o terror que os espera nos próximos anos. Eles mostraram que têm a coragem e a força de espírito de que os Shado-pan precisam nessa hora sombria.
Pena Branca voou até o terraço e pousou no ombro do seu mestre.
— Vocês passaram no último teste, jovens Shado-pan. Vocês farão o juramento para o Lorde Taran Zhu ao pôr do sol na Ponte da Iniciação — e não, ela não vai derrubar vocês no lago dessa vez.
Os outros mestres saíram do terraço seguidos por seus acólitos. Dez notou que a Mestra Sábio Sussurro não olhou em seus olhos uma única vez. Ele se perguntou se ela sempre seria assim tão azeda. Não estava nem um pouco entusiasmado para treinar com ela. Mas aquilo ficaria para outro dia.
Hoje, eu sou um Shado-pan.
Ele fez uma mesura e seguiu Pei-Ling e Chan Pesado. Eles se mudariam para o dormitório, e Dez estava empolgado por ter uma cama só sua — com sorte, perto dos seus novos amigos.
— Dez do Pergaminho Apimentado, quero ter uma palavrinha com você.
Ele se voltou e viu o Mestre Nurong sentado em um banco de pedra na ponta do terraço. O Shado-pan caolho se recostava contra a muralha, obviamente cansado da jornada. Dez se aproximou respeitosamente, com a cabeça abaixada.
— Sim, mestre?
O Mestre Nurong fitou Dez com um olho cansado e estendeu a pata.
— Você tem uma coisa que me pertence. Eu gostaria de pegá-la de volta.
Dez sorriu e meteu a pata na túnica.
— Desculpe-me, Mestre. Não é possível mudar as estações… mas hábitos antigos custam a morrer.