– Foi uma grande dádiva – Lor’themar viu-se dizer. Aurora olhou-o de soslaio, e ele percebeu que sua falta de convicção não havia passado despercebida.
– Se o príncipe está morto – Renthar raciocinou – então o que acontecerá à coroa de Quel’Thalas?
– O próprio Kael’thas decretou que Anasterian será para sempre o último rei de Quel’Thalas. A coroa está vaga.
– E se alguém a clamar para si? – disse Renthar, apertando os olhos?
– Não há ninguém vivo com direito a ela.
Renthar o encarou, e Lor’themar o encarou de volta com a mesma intensidade. Renthar Falcolança poderia duvidar dele, mas não em relação àquilo.
Aurora falou outra vez: – Acredito que esse seja o motivo pelo qual você veio aqui.
– Sim – respondeu Lor’themar.
– Então fique à vontade para partir – disse Renthar.
Lor’themar fechou os olhos: – Tem mais uma coisa. – Aquela seria a parte mais difícil.
– Tem? – A voz de Renthar não denotava qualquer emoção. – Então?
– Como os Solfúria retornaram e nossa posição na Terra Fantasma é mais… segura… os Andarilhos estão menos sobrecarregados. Eles… Eu mandaria suprimentos para vocês regularmente.
Lor’themar estava acostumado à zombaria daqueles que não podia agradar, mas não havia previsto a pontada que sentiu quando Renthar gargalhou alto. Até mesmo o rosto de Aurora, comumente controlado e sereno, se transformou numa máscara de menosprezo escancarado.
– Apodrecemos aqui por cinco anos, expulsos de nossas casas por ordem sua por nos recusarmos a sugar magia de seres vivos como se fôssemos vampiros – Renthar se levantou e se curvou sobre a mesa, tremendo de ódio – e agora você quer oferecer ajuda? Depois de tudo pelo que passamos, você vem agora? Depois do que a Horda fez conosco em nome daquele humano bastardo que se dizia um patrulheiro? Você acha que sou cego, Lor’themar? Eu deveria matar você. Acabar com a sua raça e mandar sua cabeça para Sylvana!
Mesmo em meio à explosão de Renthar, Lor’themar se prendeu a uma palavra. Ele havia dito patrulheiro, e não qualquer um, mas um patrulheiro humano. Lor’themar só sabia da existência de um:
– Eu pensava – começou lentamente – que Nathanos Marris havia morrido nas mãos do Flagelo.
Tanto Aurora quanto Renthar se viraram lentamente para olhar para ele, suas faces frias como bonecas de mármore. Pela primeira vez desde que havia chegado para este confronto, Lor’themar ouviu o coração bater mais forte e sentiu um nó na garganta.
Aurora falou primeiro:
– Ele morreu – disse.
Lor’themar encarou Aurora duramente. Havia algo no ar, espreitando como uma sombra, e ele queria descobrir o que era antes de partir.
– Ele não se tornou um Flagelo – ela emendou.
– Sylvana sempre sentiu um estranho orgulho por ele – Renthar resmungou, desviando o olhar. – Não deveria ser uma surpresa que ela o convocasse para servi-la antes que Arthas tivesse a chance de dobrar a vontade dele.
– “Nós viemos em nome da Rainha Banshee” – ele imitou. – Foi isso o que disseram ao chegar, “vocês têm algo que pertence a ele”. – Renthar se virou para olhar Lor’themar nos olhos. – Nós temos uma cópia dos registros detalhando a admissão de Marris entre os Andarilhos. Eles pegaram à força, e acabaram com todos os meus patrulheiros que puderam encontrar. A Horda, Lor’themar. Incluindo os Renegados. O povo de Sylvana. Seus aliados.
Lor’themar não conseguiu falar, pois não tinha certeza de que sua voz não sairia trêmula.
– Houve um tempo em que eu abriria mão da minha vida se o general-patrulheiro solicitasse. – A voz de Renthar estava repleta de uma amargura insuportável. – Mas nós não somos mais o povo dela. E nem o seu.
– Renthar – disse Lor’themar – mesmo com todas as nossas diferenças, você sabe que eu não teria…
Renthar riu alto, interrompendo.
– Você nos manda para cá para nos ignorar, por sermos inconvenientes, e depois ousa ficar surpreso com nosso sofrimento? Não há palavras podres o suficiente para descrevê-lo, Lor’themar. Eu sei de quem são as tropas assentadas em Tranquillien, lorde-regente. Pergunto-me quantos dos seus, patrulheiros sin’dorei, foram mortos debaixo do seu nariz. Negocie com o demônio o quanto quiser. Só espero que você receba o que merece.
– Agora vá. – ele falou baixo. – Mande suprimentos se quiser. Eu mandarei os corações dos mensageiros de volta para você, enrolados em seus próprios tabardos.
Lor’themar se levantou e virou para ir embora. Eles o haviam pego desprevenido, e ele já não tinha certeza de mais nada. O lorde-regente viu Aurora se levantar e encará-lo com o nariz empinado, desafiante. Nem ela nem Renthar disseram mais nada, e pareceu que a força do ódio que emanava deles o empurrava para fora da sala.
Ele não tinha motivos para brigar com eles. Poderia, talvez, oferecer a mão à palmatória, mas eles apenas cuspiriam nela e, em verdade, ele não podia culpá-los. Se houvesse qualquer esperança de reparação antes – e talvez ele até a tivesse – a desolação das Terras Pestilentas a haviam sufocado, como fizeram com tudo o que vivia e sonhava. Estas pontes haviam sido queimadas tempos atrás, e foram suas mãos que atearam fogo.
Os três guardas que o acompanhavam estavam sentados no salão frontal, cercados por patrulheiros quel’dorei com flechas armadas em seus arcos. Lor’themar caminhou direto para fora, e seus patrulheiros o seguiram em silêncio.
No jardim, um batedor de Quel’Lithien segurava as rédeas dos falcostruzes enquanto outro trazia as armas dos visitantes. Lor’themar pegou seus pertences, montou na sela e se virou uma última vez para Renthar e Aurora, que o observavam de pé. Ele queria dizer algo, qualquer coisa, para diminuir o abismo que os separava, mas todas as palavras que lhe ocorreram secaram e se transformaram em pó antes de ser ditas. Ele virou o falcostruz e disparou sem olhar para trás.
Enquanto passavam pelo Caminho Thalassiano várias horas depois, a neve começou a cair. O grupo cruzou os portões que demarcavam os limites ao sul de Quel’Thalas sem olhar em volta. Seus arcos outrora elevavam-se, brancos e dourados, como se saltassem das rochas e voltassem ao chão numa cascata de mármore e âmbar. Arthas os havia destruído, como todo o resto. Estandartes sombrios do Flagelo ainda se dependuravam dos baluartes, estalando e flamulando ao vento da montanha.
– Lorde Theron – chamou um dos batedores – com este clima, milorde deveria usar seu manto.
Lor’themar não respondeu. Ele não poderia se sentir mais congelado do que já se sentia. Os flocos de neve caíam sobre seu rosto e se espalhavam em sua pele.
Halduron e Rommath já aguardavam a volta do grupo em Luaprata quando Lor’themar chegou. Aethas também, para desgosto de Lor’themar. Quando Halduron olhou para ele e disse “Então?”, Lor’themar apenas sacudiu a cabeça. Halduron levantou as sobrancelhas como para perguntar “o que você esperava?”. Rommath não olhou-o nos olhos.
– Como eles reagiram? – Aethas perguntou. Lor’themar se virou para encará-lo e respondeu:
– Cinco anos atrás eu os atirei para fora das casas pelas quais eles lutaram tão ferozmente quanto qualquer um em Quel’Thalas hoje. – Como você acha que eles reagiram?
Aethas estremeceu.
– Vereesa Correventos é a esposa do novo líder do Kirin Tor. Ela não é especialmente aficionada por mim ou por aqueles que represento. Eu esperava… por você ter sido um patrulheiro… – Aethas encolheu os ombros. – Eu pensei que você poderia nos ajudar a diminuir esta lacuna. Suponho que não.
Lor’themar fez uma careta ao som do nome de Vereesa: – Você supôs corretamente.
Naquela tarde ele retransmitiu a Halduron os detalhes da sua viagem a Quel’Lithien entre goles do vinho de Canto Eterno.
– Claro que eles o tratariam com desdém. Você já sabia disso – repreendeu o general-patrulheiro. – Honestamente, eu não sei por que você se deu ao trabalho de ir até lá.
– Você teria feito o mesmo – respondeu Lor’themar, e Halduron franziu o cenho.
– Você me conhece muito bem – disse Lor’themar, por fim, e se largou na cadeira, olhando pela janela.
– Eles não sabiam da Nascente do Sol – continuou Lor’themar. – Ir era a coisa certa a fazer.
– Quem você está tentando convencer? – perguntou Halduron, perplexo.
– Halduron – disse Lor’themar rapidamente – você se lembra de Nathanos Marris?
– Claro. O que tem ele?
– Aurora me disse que ele foi transformado num morto-vivo. Sylvana o convocou. Ele é conhecido como o campeão da Rainha Banshee.
Halduron se recostou na cadeira, inclinando-a para trás, e cruzou as mãos sobre a nuca: – Engraçado. Sylvana sempre o tratou como um campeão. Kae… bem… alguns não eram partidários da ideia de deixar um humano treinar entre os Andarilhos. Incluindo eu mesmo.
– Os patrulheiros em Quel’Lithien foram atacados por um grupo da Horda em nome do campeão da Rainha Banshee – disse Lor’themar, esvaziando o copo e pousando-o sobre a mesa. – Muitos foram mortos.
As pernas da frente da cadeira de Halderon bateram com força ao voltarem ao chão.
– Por que ele atacaria Quel’Lithien?
Lor’themar deu de ombros: – Quel’Lithien tinha uma cópia dos registros Thalassianos em que Sylvana dava a palavra final sobre admiti-lo entre os Andarilhos. Aparentemente isso era o que ele queria.
– Então ele mandou os subordinados para um ataque? Por causa de um livro? – A voz de Halduron estava impregnada de incredulidade.
– Foi o que me disseram.
– Você tem certeza de que eles não estavam mentindo?
– Isso me ocorreu – admitiu Lor’themar – mas se há algo que Renthar Falcolança tem, são princípios.
– E eu não imagino Aurora sendo desonesta nem por um dia de sua vida – complementou Halduron, suspirando profundamente. – Você acha que Sylvana sabe?
– Não sei – respondeu Lor’themar, meneando a cabeça.
– Você acha que ela se importaria se soubesse?
Esta era a pergunta da qual Lor’themar estivera fugindo. – Também não sei. E se a resposta for negativa? Eles eram os patrulheiros dela – respondeu o lorde-regente, cobrindo o rosto com as mãos.
– Eles eram seus quando você os exilou – lembrou Halduron, em voz baixa.
– Na verdade, eles eram seus – devolveu Lor’themar. Ele se entregou à fúria por um instante, mas seus ombros penderam novamente. As palavras de Renthar ecoaram fantasmagoricamente em sua cabeça. “Você nos manda para cá para nos ignorar, por sermos inconvenientes, e depois ousa ficar surpreso com nosso sofrimento?”
– Eu nunca quis vê-los mortos – disse Lor’themar, encolhendo-se ao ouvir as próprias palavras – mas não poderia liderar uma nação dividida.
Uma mão pesada sobre o ombro fez Lor’themar levantar a cabeça.
– Eu sei – disse Halduron, oferecendo-lhe um copo cheio. – Acalme-se. – A voz era áspera, mas não rude. – Nós sempre soubemos que era arriscado confiar nos Renegados. Mas quem mais se ofereceu para lutar por Quel’Thalas?
Lor’themar levantou o copo. A luz da tarde passava por ele e evidenciava um novo tom de vermelho na bebida, da cor do solo das Terras Pestilentas.
Lor’themar tamborilou os dedos na mesa enquanto revisava perdidamente as anotações que fizera nos vários encontros com Aethas. Ele tinha que dar uma resposta ao arquimago até o dia seguinte. Franzindo o cenho e suspirando profundamente, o lorde-regente encarou a garrafa de vinho na estante. Uma batida na porta interrompeu o devaneio.
– Sim?
O mensageiro abriu a porta, fez uma mesura e se dirigiu a ele.
– Lorde Theron, sua presença é solicitada nos salões.
Lor’themar fez uma careta. Halduron e Rommath provavelmente já haviam chegado, e Aethas também.
– Diga-lhes que não posso recebê-los – respondeu secamente.
– Milorde – replicou o mensageiro – a Rainha Banshee não esperará.
O coração de Lor’themar quase saiu-lhe pela boca. O lorde-regente levantou-se e disse:
– Não – falou em voz baixa – é claro que não. Leve-me até ela.
O mensageiro girou sobre os calcanhares, mas não antes de lançar um olhar inquieto para o lorde-regente. Lor’themar acompanhou-o, já preparando-se para tudo.
O lorde-regente usou os minutos que demorou caminhando até o salão frontal para recompor os pensamentos. Durante os anos em que governara Quel’Thalas, ele havia percebido que cobrir-se com o manto da autoridade era quase uma ação física. Era possível sentir a mudança em seu corpo, da cabeça aos pés. Diante de Sylvana, ele precisaria de toda determinação que pudesse reunir.
Halduron e Rommath se juntaram a ele silenciosamente. A expressão do general-patrulheiro era severa. Rommath permanecia impassível; ele sabia o que esperar, mas seu horror era distante e impessoal, ao contrário do que tomava Lor’themar e Halduron. Para eles, o destino de Sylvana era uma ferida que se abria toda vez que a viam, e a dor ainda estava por ser mitigada.
No salão onde ela estava, a luz parecia esmaecer; não diminuindo de intensidade ou enfraquecendo, mas se desfazendo e afundando no espaço ocupado pela mulher, como se até os raios de sol fraquejassem perto dela. O brilho branco e feroz dos olhos da rainha realçava-lhe a pele pálida do rosto. Os deimoguardas reais a protegiam, segurando lâminas enegrecidas nas mãos esqueléticas.
Tudo o que Lor’themar conseguiu ouvir ao entrar no salão foi o eco de seus próprios passos, e mesmo esse som parecia desaparecer estranhamente rápido na presença da Rainha Banshee.
– O que a traz a Luaprata? – questionou Lor’themar.
– Acabo de retornar de Orgrimmar – respondeu Sylvana, cuja voz arranhava as paredes. Enquanto os lábios da banshee se moviam, Lor’themar viu a carne em volta da boca rachar e descascar como pele de cobra na muda. – Arthas ousou atacar o coração da Horda.
A boca de Lor’themar secou e uma enorme onda de inquietação começou a crescer em seu peito. Sylvana parou por um instante, esquadrinhando o rosto do lorde-regente atrás de uma reação, mas ele cerrou os dentes e permaneceu calado.
– O ataque foi repelido com sucesso – ela prosseguiu – mas Arthas está apenas brincando conosco. Precisamos reagir. O chefe guerreiro Thrall finalmente vê o que nós sabemos há tempos. – Seus olhos brilhavam sedentos – A Horda se prepara para a guerra. E os sin’dorei, Lor’themar, fazem parte da Horda.
As palavras o atingiam como pedras. Ele sabia o que ela pedia, e sempre soubera que este dia chegaria. Ainda assim, de pé no salão, subitamente consciente de como o grande espaço o engolia, ele se viu incapaz de dar uma resposta.
– Lor’themar! – As palavras de Sylvana se estilhaçavam ao seu redor, impacientes. – Nós destruiremos Arthas de uma vez por todas.
Lentamente Lor’themar balançou a cabeça.
– Compreendo que você e Thrall desejem que nos unamos aos esforços iniciais na Nortúndria, mas estamos excessivamente desfalcados. Recebemos uma solicitação semelhante do Kirin Tor, mas eu não tenho condições de enviar nossas forças para o norte. Desde os eventos em Quel’Danas…
– Isto não é uma solicitação, Lor’themar – interrompeu a banshee, cujos olhos faiscavam vermelhos, cheios de fúria. – Você enviará tropas. Elas acompanharão os Renegados.
– Sylvana – disse Lor’themar serenamente – nós acabamos de sair de uma guerra civil. O que temos a oferecer?
– Você esqueceu quem é o responsável pelo estado de Quel’Thalas, para começar? Quem é o verdadeiro culpado? – Sylvana procurou uma resposta no rosto do lorde-regente, e quando ele ofereceu nada, ela prosseguiu. – Bem, eu, pelo menos, não me esqueci! A vingança não me será negada, e você dará o que eu exijo, patrulheiros e magos sin’dorei, além dos Cavaleiros Sangrentos.
– Nós não podemos ficar sem eles, Sylvana.
Os lábios descamados da banshee se contorceram em escárnio:
– Então esconda-se aqui como um cão surrado se é isso o que você realmente deseja, Lor’themar. Mas se você acha que isso vai levá-lo a algum lugar, você é um idiota. Você acha que Arthas vai ignorá-lo enquanto você espera e lambe suas feridas? Você acha que eu tolerarei tal covardia? Isto é um aviso: aqueles que não estão do lado dos Renegados estão contra eles, e não ficarão de pé por muito tempo.
– Há algum tempo meu povo mantém guarda nestas terras, e foi por minhas mãos que você obteve um lugar na Horda. Você irá nos ajudar em Nortúndria, ou eu não o ajudarei mais em Quel’Thalas.
No sul, perto das Terras Pestilentas, na Trilha da Morte onde o Flagelo ainda imperava apesar de todos os esforços, eles não podiam perder as tropas de Sylvana. Ele não havia mentido para Aurora e Renthar quando disse que sua posição na Terra Fantasma era mais segura, mas também não era inocente a ponto de pensar que apenas as forças Thalassianas poderiam protegê-la. Sem os Renegados, Tranquillien cairia. O que viria depois?
Pela segunda vez desde que havia voltado de Quel’Lithien, Lor’themar lembrou das palavras de Falcolança:
“Não somos mais o povo dela.”
Honestamente, Lor’themar não poderia negar que já sabia disso há algum tempo.
“Mandar meu povo exausto para mais morte em Nortúndria ou arriscar perder Quel’Thalas para o Flagelo uma vez mais”. O lorde-regente ouviu a própria risada, longínqua, que soava mais como a de Rommath, e declarou: – Não há o que escolher aqui, Sylvana.
A Rainha Banshee o encarou imparcialmente.
– Aguardarei suas tropas na Cidade Baixa em duas semanas, Lor’themar – ela respondeu. – Não me desaponte.
– Sim, minha senhora.
Ela se virou para partir.
– Como você pode fazer isso? – Lor’themar percebeu a fúria desesperada na voz de Rommath com uma dose de surpresa. O grão-magíster ainda acreditava ser possível negociar com Sylvana.
– Isso é chantagem! – explodiu Rommath, os nós de seus dedos empalidecendo por causa da força com que ele apertava o cajado na mão. – Foi você quem quis nos ajudar, para início de conversa! Nós nunca pedimos nada, você a deu por vontade própria! Como vocês podem se dizer nossos aliados num instante e logo em seguida usar nossas terras para barganhar?
Sylvana pensou por um instante, e sua altivez fez-lhe até parecer mais alta do que Rommath.
– E vocês nunca foram obrigados a aceitar minhas ofertas. Vocês escolheram assim. Tudo o que peço agora é determinação para derrotarmos nosso maior inimigo.
Rommath olhou para ela repleto de ódio, mas Lor’themar falou antes dele:
– Há algo mais que você deseja discutir, Sylvana? – Para seus próprios ele soava derrotado, abandonado pela vontade e pela paixão. “Discutir”, uma vozinha o provocou, “como se pudesse haver qualquer discussão com a Rainha Banshee”.
– Não. Terminei o que vim fazer aqui, Lor’themar.
– Shorel’aran, Sylvana – ele disse. Os olhos da morta-viva cintilaram ao som da despedida Thalassiana, e ela não disse mais nada. Lor’themar observou-a partir desinteressado, e olhou apenas porque não havia mais para onde olhar. Ele se sentia frágil como uma folha exposta à geada.
Ao se virar, Lor’themar notou, contrariado, que Aethas havia aparecido em algum ponto da reunião. O aborreceu o fato de que o arquimago houvesse assistido à sua humilhação, mas não restavam forças ao lorde-regente para se preocupar com orgulho. Mesmo em meio à confusão, sua mente já estava preocupada em fazer listas. Ele conhecia a guerra. Halduron iria evocar o capitão Marcassol e o tenente Correalba. Rommath iria notificar os magos, e também poderia representar os Cavaleiros Sangrentos enquanto as notícias não chegassem a Liadrin. Aethas teria chance de mostrar valor. Lor’themar vagou para o corredor como se estivesse num sonho.
– Lor’themar!
Ele parou e se virou na direção da voz, tentando domar a expressão e parecer atencioso e interessado. Na verdade ele estava exausto. Nada mais o interessava além de voltar à sua mesa e ficar sozinho, se ocupar com tarefas necessárias que exigissem menos de sua mente e esquecer por um instante tudo o que havia se passado.
Como sempre, Rommath não o deixaria sair assim.
– Lor’themar! – O grão-magíster chamou-o grão de novo e o alcançou. – Você não pode estar falando sério, nós não…
– Você ouviu o que ela disse, Rommath interrompeu Lor’themar. – Ou vamos para Nortúndria ou perdemos a ajuda dos Renegados e provavelmente do resto da Horda também. Então, nós iremos. – E se virou para continuar.
– Ainda há soldados nas enfermarias de Quel’Danas! – Rommath insistiu. – Nós ainda nem velamos nossos mortos… Pela Nascente do Sol, Lor’themar!
– Nós não temos escolha, Rommath, você não compreende isso? Fazemos como Sylvana pede ou é bem possível que percamos tudo que estiver ao sul do rio Elrendar!
– Que assim seja! – Rommath gritou, e Lor’themar congelou em choque. Lentamente ele se virou outra vez, vendo o rosto de Halduron também chocado.
– Que assim seja? – Sua voz começou a aumentar. – Você sabe quantos elfos, sin’dorei e quel’dorei, morreram para defender aquela terra? Quantos ainda morrem? E você diz que assim seja? O que está errado com você?
– Eles prefeririam ter morrido em vão a ter dado as vidas para que você acabasse se tornando nada mais do que a marionete de uma… de uma aberração, em nome do sacrifício deles!
Lor’themar não podia acreditar no que estava ouvindo. Rommath olhou para ele, não com raiva ou desprezo, mas em um desespero incomum, selvagem. Durante toda a trajetória de Lor’themar como regente, mesmo havendo várias discussões sobre diversos assuntos, Rommath nunca havia perdido a compostura. Agora ele estava transtornado. Do canto do olho, Lor’themar percebeu um pequeno grupo se aglomerando. Ele não queria fazer uma cena.
– Não caia nas ameaças dela – pediu Rommath em voz baixa, e Lor’themar percebeu horrorizado que ele estava, na verdade, suplicando. – Ela apenas usará você.
Lor’themar cerrou os punhos, ressentido: – Eu farei tudo o que for preciso para proteger Quel’Thalas e seu povo, mesmo que isso signifique ser usado. E você obedecerá minhas ordens. Fui claro?
– E por quanto tempo você acha que pode tomar parte neste jogo?
– Quanto tempo for necessário – respondeu Lor’themar, inabalável. Rommath havia chegado ao limite da obstinação, e o lorde-regente sequer dera sinal de que poderia ser vencido. Encarando Rommath, Lor’themar se empertigou. O olhar foi devolvido por um instante, mas logo o corpo de Rommath curvou-se, e seus olhos se fecharam:
– Outro líder dos sin’dorei certa vez me disse algo parecido, Lor’themar – insistiu o grão-magíster suavemente, com o olhar distante. – E eu não contra-argumentei. Na verdade, na época eu o julguei certo.
O sangue de Lor’themar gelou.
– Nós o enterramos em Quel’Danas. – Rommath suspirou profundamente. – Eu notificarei lady Liadrin e o magíster Jurassangre de sua decisão, lorde-regente. Reportarei informações sobre os preparativos em breve. – O grão-magíster deixou a sala sem dizer mais nada e com os ombros caídos.
Quase incapaz de pensar, Lor’themar observou com o olhar vazio a silhueta de Rommath se afastar até desaparecer pelos corredores.
– Lor’themar. – A voz baixa de Halduron o tirou do transe. Ele se virou para o amigo e notou um olhar estranho no general-patrulheiro, como se os dois não se conhecessem. Lor’themar queria sacudi-lo, gritar para que ele parasse de encará-lo daquele jeito.
– Quais são as ordens do lorde-regente? – Halduron perguntou com uma formalidade enervante.
– Entrar em contato com o Retiro dos Andarilhos e o Enclave dos Andarilhos. Diga a eles o que foi decidido.
Halduron assentiu com a cabeça, partindo com outro olhar ilegível.
Lor’themar olhou em volta, e sua carranca sombria mandava servos e guardas do palácio de volta às respectivas obrigações. A única pessoa que permanecia no corredor era Aethas Fendessol, que não admitia ser ignorado:
– Já que iremos para Nortúndria, você irá apoiar o Kirin…
– O Kirin Tor pode fazer o que diabos achar melhor, não é da minha alçada – disse Lor’themar num impulso. – Mas considerando que tropas sin’dorei partirão logo para o norte, suponho que muitos deles acabarão batendo em sua porta. Você fará o que puder para ajudá-los, Aethas. Agora vá ter com Rommath, estou certo de que ele tem algo para você fazer. – O desprezo de Lor’themar finalmente o vencera. – Suponho que isso deva satisfazê-lo, arquimago.
Aethas meneou a cabeça negativamente: – É verdade que eu desejava obter seu apoio em Nortúndria, lorde-regente. Mas não nestes termos. Acredite-me quando digo que preferiria vê-lo concordar de livre e espontânea vontade, não em função de…
– Minha vontade permanece intacta, muito obrigado. – Lor’themar interrompera Aethas novamente, sofrendo com a ferroada das palavras do arquimago. – E ainda é a minha vontade que governa Quel’Thalas.
– É claro, milorde – respondeu Aethas, curvando-se discretamente em assentimento. Quando o arquimago levantou a cabeça, no entanto, Lor’themar viu que aquelas desculpas não se refletiam nos olhos do interlocutor. Em ebulição, Lor’themar deu-lhe as costas e o deixou sozinho, rodeado de bandeiras e flâmulas vermelhas e douradas.
Diário do lorde-regente, nota 83
Não me lembro da última vez em que contei a alguém uma mentira tão descarada desde que fui sugado pela política. Mas eu menti para Aethas, e ele sabe, e eu também sei, e qualquer um que tenha me ouvido também sabe. Minha vontade significa pouco, na verdade. Posso fingir que meu poder é real mas, no fim, é tudo teatro, e nada é verdade. Eu posso lavar minhas mãos, bancar o mártir, ser vitimado e não realizar nada; ou posso lutar e vitimar outros no meu lugar, e assim me tornar a essência de tudo que sempre combati. Se em algum momento racionalizei minhas escolhas usando outra lógica, eu estava certamente mentindo para mim mesmo. Falcolança estava certo: eu negocio com demônios, mas a Nascente do Sol poderia nunca ter sido restaurada caso nós não descêssemos a esse nível. Ele e Aurora podem dormir tranquilos, sabendo que jamais comprometeram sua ética, mas se negarem que prosperam por causa dos que o fizeram, então eles se enganam tanto quanto eu.
Cá estou, muito perto de acreditar que os fins justificam os meios. Mas as ruínas do Terraço dos Magísteres me assombrarão para sempre, me lembrando do destino que está conectado a tais pensamentos. Esta é a linha em que me equilibro, finalmente ciente de que as ações que tomo por necessidade são, no entanto, indefensáveis. Essas verdades jamais poderão ser reconciliadas, mas às vezes as vislumbro lado a lado e quase as compreendo. Eu poderia considerar essa revelação profunda se fosse ignorante o suficiente para não perceber que estou apenas aprendendo o que Kael’thas, e Anasterian antes dele, aprenderam a seus tempos. Tudo que podemos fazer é percorrer a estrada que nos foi dada com tanta dignidade quando pudermos, cada um para a própria glória ou derrota, e orar para que ainda haja algo de nossos corações quando estiver tudo acabado. Pela Nascente do Sol, eu espero que reste algo do meu.