Uma figura solitária irrompeu da casa. Uma elfa noturna. Da Aliança. Um mero borrão negro à luz da lua. A glaive lunar estava desembainhada, as quatro lâminas em riste. Ela morreria lutando.
Ótimo, pensou Kishok.
Os nove xamãs sombrios uniram suas forças. A terra rugiu. O vento uivou. Kishok fitou o espírito do fogo. — Expulse as sombras — ordenou ele. — Não permita que ela se oculte na escuridão. Se é que você é capaz disso — acrescentou com desprezo.
O pequeno espírito ergueu a mão.
As chamas lamberam os céus. Uma gigantesca bola de fogo azul, com cerca de 15 metros de diâmetro, pairava no ar. Mesmo estando tão longe, a luz cegava. Kishok cobriu os olhos. O calor queimava sua pele. Quanto poder… Ele subestimara o pequenino. Parecia uma criança, sim, mas seria bastante útil.
— Excelente! — gritou ele, rindo. — Agora…
Gritos de dor cortaram a noite e tudo parou. O vento e os espíritos se calaram.
O quê? Kishok espremeu os olhos para poder enxergar o campo sob a luz intensa. Um segundo grito de agonia se ouviu, e o orc pôde ver a elfa noturna correndo. Um líquido negro pingava de sua lâmina.
O vento permanecia imóvel. Havia dois Kor’kron o controlando. Ela teria matado ambos?
Kishok irrompeu em raiva. A luz do elemental ajudara a elfa, não os Kor’kron. — Pare com isso! — A bola de fogo desapareceu e, na sua ausência, o campo foi engolido pela escuridão absoluta.
O xamã ouviu gritos confusos. A visão noturna dos orcs havia sido obliterada. — Faça o que eu digo. Precisamos de luz. Traga… — Subitamente, a bola reapareceu, mais luminosa do que antes. Kishok cerrou os olhos. Ele viu as veias das suas pálpebras.
Num arroubo de raiva, Kishok se virou para o ponto onde vira a elfa pela última vez e liberou sua fúria. O estrondo do trovão reverberou no ar.
Ele não chegou a ver as outras figuras que saíram correndo pela porta da frente.
O Velho Pata do Monte passou despercebido e foi para o sul. Nenhum ataque imediato foi na sua direção. Ele agarrou um dos rastelos de Haohan. Os dentes eram feitos de ferro fantasma. Caro. Resistente. Afiado.
Perfeito.
Os gritos enfurecidos eram um bom sinal. A elfa noturna devia ter matado pelo menos um dos orcs. As ondas de luz indicavam que os espíritos não estavam obedecendo completamente seus novos mestres. Os clarões irregulares lhe indicavam a posição dos orcs. Eles se deslocavam para o oeste em duplas, à procura de Lyalia.
Eles a encontraram. A noite irrompeu em caos. A terra tremeu. Pata do Monte manteve o passo firme até alcançar a dupla de xamãs mais próxima.
Estavam de costas para ele. Pata do Monte firmara os pés — exatamente como o Mestre Pata Ferida lhe ensinara tantos anos antes — e projetou a haste do rastelo na direção do pescoço de um dos orcs. A cartilagem se desfez com o golpe. O orc desafortunado caiu ao chão e um assobio agudo escapou de sua traqueia destruída.
O outro xamã sombrio gritou assustado. Os dois deviam estar controlando os espíritos da água. Pata do Monte viu um globo aquoso, com um aspecto negro e vil, suspenso entre ele e os orcs. Como nenhum dos orcs canalizava seus poderes, os espíritos não se sentiam mais compelidos a obedecê-los. O globo estourou feito uma bolha. O pandaren sentiu algumas gotas queimar o seu pelo e deu uma cambalhota para se esquivar. A chuva de veneno caiu sobre a face do orc moribundo, transformando seus arquejos num gargarejo sinistro.
O outro orc ficou encharcado. Ele guinchou de dor e saiu aos tropeços em direção ao lago, sentindo a pele queimar e arder.
O orc gargareja ainda aos pés de Pata do Monte. O pandaren brandiu o rastelo uma última vez e enfim o orc se calou. Pata do Monte teve que arrancar os dentes do corpo inerte e acabou demorando mais do que queria.
O outro orc desapareceu ladeira abaixo, rumo à margem do lago. Pata do Monte sentiu-se tentado a segui-lo, mas isso o afastaria da luta. Então virou-se para o campo em busca de um novo alvo.
Lyalia sentiu calafrios por todo o corpo ao ver que os raios abriam crateras a apenas alguns passos de distância. A tempestade desenhava um arco — longe dela, logo percebeu. Pelo menos, tem alguém mais cego do que eu. A bola de fogo gigante se apagou mais uma vez. Um dos orcs começou a gritar com raiva ao longe.
Ela continuou correndo. Tomou um caminho de terra a leste que dava no campo de raiz-de-cobra. Os espinhos arranhavam suas pernas. Um deles afundou no seu tornozelo. A elfa fez uma careta, mas não reduziu o passo. Os raios iluminavam o campo à sua frente. Ao lado de um totem, duas silhuetas olhavam na direção errada.
Azar deles, pensou.
Lyalia sorriu e deixou que as lâminas da glaive lunar fossem na frente.
— A elfa noturna é rápida — disse Haohan.
— Siga o exemplo dela, pai — respondeu Gina. A elfa atraía a atenção dos forasteiros para o leste. Os Garra de Barro dispararam para o oeste, dando a volta num orc solitário. Era estranho aquele estar sozinho. Os outros estavam em duplas.
— Juntos? — perguntou ela.
— Juntos — concordou Haohan.
Haohan baixou os ombros. Gina pegou impulso e fincou a haste da enxada no chão, saltando ao ar, o pé almejando a garganta do orc.
— Zertin! Cuidado! — alertou outro Kor’kron do outro lado do campo.
O orc se virou. Aos gritos, lançou-se para longe, esquivando-se de Gina e Haohan. Esse é dos bons, pensou Haohan.
O orc os encarou e ergueu os braços.
— Pai! — Gina lançou-se sobre Haohan. Ambos foram ao chão. Por um triz, o pandaren não fora perfurado por um par de mandíbulas. Os dois se levantaram às pressas e fitaram os olhos brilhantes de uma sombra negra. Um raio caiu sobre o campo, iluminando a figura. Era um lobo. O espírito de um lobo. Ele uivava, num misto de tormento e raiva.
— Há muitos lobos na sua terra. Um pouco menos agora. — O orc deu uma gargalhada selvagem e, então, correu de volta para a luta contra a elfa noturna.
O espírito selvagem saltou sobre os dois pandarens. Gina brandiu a enxada. A ferramenta agrícola atingiu as costelas do lobo fantasma, empurrando-o para longe. Ele rosnou para a pandarena, mas saltou em direção a Haohan, que escapou por pouco.
— Gina, me passa isso!
Ela lhe arremessou a enxada. O pandaren desferiu o golpe. Tantos anos dando paulada na cabeça de vermingue haviam tornado o movimento quase instintivo. A haste assobiou no ar, fazendo com o que o lobo recuasse.
Haohan hesitou e, então, brandiu a ferramenta novamente. O barulho fez o lobo se afastar. — Lobinho! — gritou Haohan, sem convicção. — Lobinho! — Ele continuava brandindo a enxada. Os olhos vermelhos do lobo o seguiam.
— Pai — sibilou Gina —, o que você está fazendo?
— Um pouco menos — disse Haohan. — Menos lobos, foi isso que o orc disse. — Subitamente, o pandaren fincou a enxada na terra. O lobo a fitava, sem ousar avançar. — Acho que esse lobo era desse vale. — O espírito se sentou e começou a choramingar, produzindo um som inquietante.
— De onde? Das fazendas ao leste? — perguntou Gina.
— Às vezes, passam alcateias de lobos por aqui, certo?
— Certo. E este lobo se lembra dos fazendeiros.
— E os orcs o mataram e escravizaram seu espírito — disse Haohan, cerrando os dentes.
— Entendi. Lobinho! — Tentou Gina, também sem convicção alguma. — Lobinho! Pai, você acha que os outros espíritos lupinos também vão reconhecer os fazendeiros?
— Que espíritos? — Haohan olhou na direção de Gina e estacou. — Ah, esses.
Sete pares de olhinhos brilhantes os encaravam. Um presente do orc chamado Zertin, sem dúvida.
— Espero que sim, Gina
— Fantástico — disse ela baixinho.
O ar do porão soprava na velocidade de um furacão. Rachaduras subiam pelas paredes. A terra tremia.
Nem Maraad nem o orc haviam se movido. A batalha deles era no plano mental. Maraad impedia o orc de estabelecer contato com os elementos, mas, a cada vez que os alcançava, Mashok ganhava um pouquinho mais de controle sobre eles. O sorriso debochado desaparecera do rosto do orc fazia muito. Estava claro que Maraad conseguia acompanhar o seu ritmo.
O draenei deixou uma pequena porção de Luz se perder no ar. Através dela, enviou uma mensagem simples, uma sensação.
Não sou teu inimigo. Não estou lutando contigo.
A mensagem não era para Mashok. Era para as suas vítimas. Os espíritos. Maraad era paladino, não xamã, mas talvez os espíritos o entendessem.
— Quanto tempo vai aguentar, Aliado? — perguntou Mashok. — Você não dorme há uma semana. Já eu dormi bem, graças a você. Logo, logo, você vai vacilar.
A cada segundo, Mashok tentava esmagar Maraad com o poder da terra, transformá-lo em cinzas com o fogo, inundar seus pulmões com água. Maraad defletia todos os golpes. Mas o orc tinha razão. Sua mente estava cansada. A qualquer momento, vacilaria.
Ainda assim, o draenei se permitiu sorrir. Nenhum orc tinha ido socorrer Mashok. Estavam todos ocupados lá em cima.
Bom trabalho, Lyalia, pensou ele enquanto bloqueava outra investida.
— Fiquem aqui — sussurrou Dentanzol. — Ninguém sobe.
O vermingue estava com medo, estremecendo a cada tremor da terra. Poucos deles conseguiam manter os olhinhos vermelhos abertos. Mais uma toca desmoronara devido à batalha na superfície. Era impossível saber quanto tempo aquela resistiria.
— Dentanzol, nós tem que ajudar — disse um dos mirradinhos. Era o mesmo que questionara o plano da matriarca. — A terra dói. Os grandão verde tão machucando ela.
— A gente vai ficar aqui — repetiu Dentanzol.
— E se a terra ficar machucada demais? — insistiu o mirradinho. — Grandão morto não planta cenoura. Terra machucada não dá cenoura.
Alguns vermingues abriram os olhos e se voltaram para Dentanzol.
— A gente vai ficar aqui — repetiu Dentanzol, menos convicto desta vez.
— Alguém vai acabar se machucando nessa história — ponderou Fung.
Ele se agachava por trás da casa do Garra de Barro, observando o redemoinho que atravessava o campo. Quase tão logo pisara do lado de fora, o vórtice horrendo surgira sobre sua cabeça. Não chegou a pensar que o alvo fosse ele, mas demorou um tempo até o redemoinho sair em perseguição da elfa noturna.
Barulhos desagradáveis irrompiam do porão embaixo dele. O orc e o draenei devem estar bem ocupados, pensou ele.
Também havia um cheiro desagradável. Fung torceu o nariz. Trovão, o mushan, batia os cascos no chão, choramingando, assustado pela batalha. Pelo jeito, não estava mais constipado. A pilha de excrementos ao seu lado aumentava mais e mais. Depois que aquela história absurda acabasse, aquilo renderia a Fung um excelente fertilizante.
— Fung vai ficar bizoiando bosta a noite toda?
Mung-Mung estava dependurado no beiral, olhando feio para o fazendeiro. — Não estou vendo você lutar — retrucou Fung.
— Os fedorentos fizeram um tornado. Mung-Mung ficou esperando ele passar. — O hozen pulou do beiral, aterrissando ao lado de Fung. — Como vamos esmagar esses xamãs idiotas?
— Estou pensando. — Fung fitava Trovão com desdém. O pandaren considerou brevemente montar no mushan e se lançar à batalha. Muito brevemente. As bestas de Haohan eram boas pra puxar carroça, mas não conseguiriam carregar um pandaren nas costas.
No entanto…
Fung cofiou o queixo e mediu Mung-Mung com os olhos. Então olhou de volta para Trovão e sorriu. — Ei, Mung-Mung — disse ele.
Mung-Mung acompanhara seu olhar. Ele balançou a cabeça, veemente. — Não. Mung-Mung diz não!
— Tenho uma ideia — disse Fung, animado.
— Não!
Três a menos. A lâmina de Lyalia talhava e perfurava. Quatro. Ela começou a correr de novo, tentando se manter numa área segura em meio àquele caos.
Os Kor’kron se reagruparam. Ataques renovados foram lançados contra a elfa. Um tornado atravessava o campo. Seu peito queimava. Ela inalara a fumaça tóxica invisível que a última dupla de orcs conjurara e, ao respirar, sentia o ar arranhar sua garganta, como se fosse areia. Lâminas pontiagudas de terra passavam assobiando rente aos seus ouvidos. Uma delas lhe atingira o pescoço, acrescentando um pequeno corte à vasta coleção que já reunira.
Dois xamãs sombrios estavam parados diante dela. Um deles ergueu o punho. Ela não teve tempo de desviar desta vez. Uma coluna de fogo rebentou sobre a elfa. A força do impacto a derrubou, mas o ataque prosseguiu. Caíam brasas, pedrinhas de fogo, e o seu imenso poder a impedia de se levantar. Lyalia cerrou os dentes e cobriu a cabeça, recusando-se a gritar. A elfa sentia o corpo todo arder em chamas.
Levei quatro, lembrou a si mesma. Quatro. Nada mau.
Pai, falta pouco para nos encontrarmos.
Ela ergueu os olhos e fitou o orc que estava prestes a matá-la.
Os olhos da elfa e de Kishok se encontraram. Ele sorriu com desprezo e fez um gesto em sua direção. Imediatamente, ela foi engolida pelas chamas.
Pronto. O orc deu fim à chuva de brasas e fitou a escuridão. Avistou Zertin perto da casa, sem dúvida aguardando o momento apropriado para entrar no porão e matar o Aliado tolo que ali se encontrava. Perfeito. Kishok depositou a bolsa onde levava seus totens no chão para ajustar as alças, preparando-se para o final da batalha. O orc que estava perto dele, um caladão chamado Trokk, imitou o gesto. Seria fácil acabar com os fazendeiros. Talvez alguns fugissem, mas seria fácil rastreá-los. Se o vento…
Um assobio agudo interrompeu seus pensamentos.
No local onde jazia a elfa, erguia-se uma nuvem de vapor. As chamas haviam desaparecido. O elemental do fogo ria.
Uma luz azul despontou de trás de um nabo enorme. Mais um elemental. Água. Ele extinguira o fogo. Tímido, lançou um glóbulo de água no ar. O espírito do fogo lançou um pequena lança flamejante, que colidiu com o globo e o desfez desfez em vapor e fagulhas.
Os dois espíritos riram de novo.
Estão brincando… de pega-pega?
Aos gritos, Kishok tentou esmagar o elemental do fogo com um pisão.
— Kishok, não! — alertou Trokk.
O espírito do fogo desviou-se do golpe, e o orc atingiu em cheio a bolsa com os totens. Kishok sentiu os artefatos se despedaçarem sob seu calcanhar.
Kishok fuzilou Trokk com o olhar, e este tomou a sábia decisão de ficar de boca fechada. — Basta! — rosnou Kishok. Os espíritos se recusavam a obedecê-los? Queriam brincar? Ótimo. Era por esse motivo que a verdadeira Horda precisava do xamanismo sombrio. Os espíritos começaram a desobedecer os xamãs do chefe guerreiro em Orgrimmar. Eles foram rapidamente disciplinados.
Kishok esmagaria aquele espírito. Ele o faria de exemplo. Abriu a mente…
Mas não conseguiu ver nada. O espírito do fogo fitava os totens despedaçados e ria.
— Não preciso dessas porcarias — disse Kishok, calmo, enquanto caminhava. — De um jeito ou de outro…
— Ei, catinguento!
O chão tremeu e o grito de alerta de Trokk foi abafado por um baque horrível. Logo em seguida, uma criatura colidiu com as costelas de Kishok. O orc foi de cara ao chão. Pôs-se de pé, grunhindo. A silhueta de um mushan manquejante se afastava sobre o campo de nabos. A besta deu meia-volta para investir contra o orc outra vez. Kishok abaixou-se e olhou à sua volta. Trokk jazia no chão imóvel, a cabeça deformada. O mushan pisara nela.
Ouviu o barulho de um passo à sua esquerda — muito perto — e, de repente, não sentia mais o lado esquerdo do torso. Vislumbrou um borrão preto e branco com o canto do olho e, desesperado, ergueu o braço sobre a cabeça, bloqueando um novo golpe.
Um dos fazendeiros pandarenos o olhava nos olhos. Tinha na pata uma arma estranha e afiada. — Odeio forasteiros. Quer dizer, quase todos — disse o fazendeiro.
O torpor logo se transformou em dor intensa. Outra arma estranha perfurava suas costelas. Constatou o fato sem se alarmar. O orc era bem treinado. Suprimiu a agonia e se endireitou. Uma criatura inferior teria tombado, mas não um Kor’kron.
Desajeitado, o pandaren investiu contra o flanco direito do inimigo. A dor reduzia os reflexos do orc, mas era o seu outro lado que estava dormente. Kishok enterrou o punho na face do fazendeiro, derrubando-o na terra, e arrancou a arma de suas costelas, com um grunhido. A empunhadura era estranha, curvada, como se feita de ferro velho.
— O que é isso?
— Tesoura — disse o pandaren, a voz abafada pela mão que cobria o nariz quebrado — é para tosar ovelhas.
Kishok sentia o sangue escorrer de seu torso. Removeu a segunda tesoura. — Acho que você não entendeu quem está enfrentando, fazendeiro. Não sou um simples…
— Ainda vivo, catinguento?
O chão tremeu novamente. O mushan voltou atropelando Kishok, lançando-o de ponta-cabeça. Por um triz, os cascos imensos não esmagaram o crânio do orc. Desesperado, o xamã tentou conjurar seus poderes. O totem da terra não havia sido destruído completamente, e, com muito esforço, ele conseguiu capturar um espírito da terra. A plantação estremeceu e o mushan tombou de lado, fazendo com que o hozen sobre ele urrasse de fúria. O espírito se contorcia tentando fugir, mas Kishok se recusava a soltá-lo.
Um pandaren e uma pandarena mais nova vinham do leste. Do oeste, aproximava-se um outro mais velho. O mushan e os pandarens restantes estavam ao sul. Kishok cambaleava em direção ao norte. Não havia como ser sutil. Estava sangrando. Ferido. Precisava de distância e tempo para despistá-los. Havia uma ladeira que levava a um grande lago. Kishok, do alto do morro, forçou o espírito a erguer um muro de terra de um metro e meio entre ele e os pandarens.
O espírito obedeceu, usando justamente a terra que estava sob os pés do orc.
Kishok foi ao chão.
Ele rolou ladeira abaixo, caindo no lago. Seu corpo inteiro latejava de dor. Por alguns instantes, o orc respirou com dificuldade, esperando que a agonia abrandasse.
Eles vão pagar. Sua fúria crescia a cada instante. Eles vão PAGAR. Levantou-se, a água batendo-lhe nos joelhos. Seu sangue desenhava redemoinhos negros no lago.
Kishok tropeçou em algo. Ele se abaixou para pescar a coisa. Uma bolsa. Uma bolsa com totens xamânicos. Ou melhor, os restos de uma bolsa. Kishok a inspecionou, curioso. Parecia que ela havia sido rasgada ao meio… por dentes.
O orc sentiu um calafrio. Um de seus companheiros havia descido ao lago. O que aconteceu com ele?
A superfície do lago se agitou. Uma figura imensa emergiu das águas, as mandíbulas escancaradas e os dentes reluzindo à luz da lua. Num urro desesperado, Kishok recuou aos tropeções. O peixe imenso — gigantesco — avançou contra ele. Subitamente, os dentes se cerraram e o estalo de ossos se partindo ecoou nas montanhas ao norte.
A bolsa de totens voltou às águas do lago e, lentamente, o peixe mergulhou nas profundezas.
— Vocês, forasteiros, precisam comer direito — disse o Fazendeiro Fung, tampando o nariz quebrado com mão. — É uma magreza que só. Se tivesse sustância, você estaria bem melhor agora.
— Quem sabe? — grunhiu Lyalia. Ela estava deitada de barriga para cima. As chamas duraram pouco. Com sorte, não deixaria sequelas e ela ficaria bem logo. Mas ainda doía, e muito. De onde estava, via o elemental de água que a salvara saltitando pela fazenda, brincando com o espírito do fogo.
— Consegue ficar de pé?
— Vamos ver — respondeu ela. Fung a ajudou a se levantar. Passado um momento, a elfa avaliou que não cairia morta ali e agora, mas, se Maraad não a curasse dentro de um hora, não teria grandes chances. — Sobraram quantos?
Um grito horrível ressoou no lago. Então, fez-se silêncio. O muro que fechava a ladeira do lago desabou num monte de terra. — Um a menos — disse Fung. Mung-Mung comemorou aos gritos e deus tapinhas carinhosos na cabeça do mushan, que batia os cascos no chão.
— Acho que só falta um — ponderou Haohan. Ele contorceu o braço esquerdo, num esgar. Uma laceração marcava o pelo branco. — Além do que está no porão.
— O que estamos esperando? — indagou Gina. Pata do Monte resmungou, como que apoiando a menina.
— Ele é forte, Lyalia — advertiu Haohan. — Muito forte.
A elfa avaliou as forças que lhe restavam. Cada movimento lançava uma rajada de dor dos pés à cabeça, mas ao menos conseguia brandir a arma. Isso teria que bastar.
— Fiquem… — Ela hesitou. Eles não ficariam, mesmo que pedisse com educação. Decidiu mudar a abordagem. — Deixem eu ir na frente. Esperem ele vir atrás de mim e só então ataquem. Funcionou até agora.
Fung passou os olhos pelos ferimentos da elfa com pessimismo, mas aquiesceu. Os outros também.
Zertin ajoelhou-se diante da casa dos pandarens, passou os dedos pela terra e sorriu. Os espíritos se contorciam sob seus pés, aos gritos e urros. Mas obedeciam-lhe. Mashok logo estaria livre.
Passos às suas costas.
O orc se virou, deparando-se com a elfa que se aproximava lentamente. Ela parecia ferida. Queimada. Os pandarens vinham logo atrás. Havia até um hozen montado num mushan no meio deles.
— Pois bem — disse ele, erguendo a voz. — Estou em desvantagem. Acham que vou me render, não acham?
Lyalia deu um passo à frente. — Não — respondeu ela.
— Pelo menos não é completamente tola — considerou o orc. Ao avistar Haohan e Gina atrás da elfa, dirigiu-se a eles: — E então, gostaram dos meus bichinhos?
— Eles já foram embora — retorquiu Gina. — Não estavam interessados em matar os fazendeiros que sempre lhes deram de comer.
— Entendo — disse Zertin. — Então vou apresentar a vocês os que eu trouxe de Durotar.
Uivos fantasmagóricos cortaram a noite e um bando de espíritos lupinos saltou sobre o grupo. A elfa se preparou para lutar e proteger os fazendeiros.
Zertin a ignorou e disparou em direção à casa.
Lá estavam: as portas do porão.
Tudo no porão tremia. Tudo agonizava. Tudo, exceto o orc e o draenei. O alarido estridente dos espíritos e o redemoinho de Luz sobrepujavam todos os sentidos. Maraad se esforçava para manter os olhos abertos.
Às suas costas, lá no alto, as portas do porão balançaram.
— Eles chegaram — sibilou Mashok por entre os dentes. — Vocês perderam. Eles estão aqui em cima.
Não sou vosso inimigo. Sou inimigo deles, repetiu Maraad aos espíritos. — Era exatamente o que eu estava esperando — disse.
O orc ficou confuso. As portas do porão se escancararam. — Mashok! — gritou um orc. — Vim salvar…
O draenei sacou o martelo da cintura e o arremessou. A arma atingiu o queixo do orc recém-chegado, derrubando-o no chão. Maraad se pôs de pé, subindo a escada do porão em duas pernadas. Ouviu um grito de fúria às suas costas e sentiu uma concentração de poder. Mashok finalmente dominara os espíritos. O draenei apanhou o martelo e correu para fora da casa, escapando por um triz das raízes imensas que irrompiam do solo e se contorciam em busca de uma presa.
Depois disso, tudo aconteceu muito rápido.
— Não deixe o mushan chegar perto da casa — gritou Lyalia.
— Este catinguento não me obedece! — gritou Mung-Mung de volta, segurando-se no pescoço de Trovão para salvar a própria pele. Os lobos fantasmagóricos não passavam de ilusão, mas o mushan ficara absolutamente aterrorizado. Pelo menos a criatura estava correndo para longe.
O barulho de madeira dobrando e partindo chamou a atenção de Lyalia. Ela viu o Vindicante Maraad sair da casa de Garra de Barro correndo.
— Ele se soltou! — anunciou Maraad, virado para a porta. — Sobraram quantos?
— Só esses dois — respondeu a elfa.
— A hora é agora! — Maraad lançou um olhar breve aos pandarens. — Ajudai como puderem.
Dois orcs emergiram da casa. Zertin cambaleava, a mão pressionando o queixo como se tivesse sofrido um golpe violento. O outro era Mashok. O ex-prisioneiro ergueu os braços. Vinhas grossas de raiz-de-cobra se enredaram em volta das vigas de suporte da casa. As raízes tensionaram uma só vez, e a casa desabou em ruínas.
— Raízes… Tem certeza de que ele não é druida? — perguntou Lyalia. Maraad suspirou.
Mais raízes irromperam do chão, sob os pés da elfa. Ela esquivou-se como se dançasse. O chão tremeu. Ela viu o martelo de Maraad brilhar enquanto o draenei se esquivava de outras raízes.
— Alguma ideia? — berrou a elfa.
— Não lutes contra os espíritos. Luta contra eles.
Então ela se deu conta de que Maraad não havia esmagado nenhuma das raízes. — Ótimo. Eu estava achando fácil demais… — disse. Os orcs tinham acabado de sair do porão. A cada segundo que se passasse, a tarefa se tornaria mais árdua. Ela disparou contra os inimigos e, em meio às fintas e esquivas, resistia à vontade de cortar as raízes à sua frente. Espero que você saiba o que está fazendo, Maraad. A terra se abriu sob ela e por pouco Lyalia não caiu no buraco. Lá embaixo, vislumbrou o brilho avermelhado do magma.
Os dois xamãs sombrios recuavam à medida que ela se aproximava. Rochas afiadas irrompiam da terra. Ramos de raiz-de-cobra lançavam-se contra o seu pescoço. Era impossível encurtar a distância.
Uma figura avançou contra os orcs por trás. Gina. Lyalia torceu para que ela tentasse um ataque rápido, de bate e volta, mas a pandarena pulou nas costas de Mashok, puxando seu rabo de cavalo e dando-lhe uma chave de pescoço.
O outro orc, Zertin, hesitou. Outra figura se aproximava pela lateral. Era o fazendeiro Fung. Lyalia e Maraad avançaram. Mashok desvencilhou-se de Gina, mas foi derrubado por Haohan. Zertin esquivou-se das tesouras de Fung e entrou no alcance de Lyalia. A elfa noturna desferiu dois golpes em sequência. Zertin se desviou do primeiro e teve o braço ferido no segundo.
— Chega! — Mashok estava caído, mas bateu palmas e raízes saíram do chão e se enrolaram no pescoço de Haohan e Gina, erguendo-os no ar. Fung, por sua vez, foi pego pelo tornozelo.
— De fato, já chega — disse o Vindicante Maraad. O martelo zuniu pelos ares. Mashok soltou um grito e tentou rolar para longe, mas foi atingido em cheio na coxa direita. Lyalia pôde ouvir os ossos se partindo.
Logo em seguida, três raízes pontiagudas perfuraram o abdome de Maraad, trincando sua armadura. Ele caiu com um grunhido, o sangue azul escuro pingando sobre a terra.
Zertin urrava enfurecido, mas calou-se ao sentir uma patada de pandaren no queixo. Era Pata do Monte. O orc caiu de joelhos. Duas raízes trespassaram o ombro do velho pandaren e o puxaram para o chão.
— Pata do Monte! — Lyalia fincou uma das lâminas da glaive lunar no peito de Zertin. Cinco, pensou ela. Antes que pudesse se mover, sentiu uma raiz se enrolar em seu pescoço e apertar com força. Os espinhos penetraram profundamente a sua carne. Ela se contorceu e foi erguida no ar.
Cinco para mim. Nove de dez. Nada mau.
Mashok ergueu as mãos e cerrou os punhos. As raízes imobilizavam os pandarens, deixando-os suspensos e completamente impotentes. Só o hozen continuava livre. Ele gritava de raiva, ao longe, enquanto tentava dominar o mushan. A elfa noturna se debatia contra a planta que a enforcava, e o draenei respirava lentamente, apertando o ventre trespassado pelas raízes.
Era o fim da batalha. O lamento e o pranto dos espíritos, para o orc, eram como uma canção de vitória. A poucos passos dele, Zertin soltou o suspiro derradeiro e foi se juntar aos outros xamãs sombrios no reino da morte. Não era uma perda terrível, ponderou Mashok. Seus lacaios sempre foram um fardo.
— Agora — disse Mashok, saboreando o prazer do momento — vou mostrar que sou um orc de palavra. — Estalou os dedos e as raízes forçaram o Vindicante Maraad a se ajoelhar. — Você e a elfa morrerão por último. Depois que eu tiver cuidado de cada um dos fazendeiros que não conseguiram proteger.
— Não importa. — As palavras mordazes eram do Velho Pata do Monte. O sangue escorria de sua boca e de seus ombros. — Você está só, e esta terra é sua inimiga.
— Ótimo. — Sorriu Mashok. — Vocês passaram gerações lavrando essa terra? Preste atenção nas minhas palavras: eu vou salgar esta terra. Farei com que os espíritos paguem pela sua imbecilidade. Deixarei este vale infértil. — Ele encarou o pandaren com desprezo. — Eles saberão que vocês decidiram me enfrentar e saberão também que vão destruir tudo aquilo que vocês construíram.
— Eles já sabem. Queres dar cabo deles. Nós lutamos contra ti — interviu o draenei, numa voz sôfrega. — Eles sabem.
Mashok o ignorou.
A terra estava quieta. Os espíritos estavam em silêncio. Eles não mais clamavam por misericórdia. Não mais tentavam fugir. Não mais pranteavam. Enfim a submissão. O único som que se ouvia era um resfolegar suave que vinha do campo atrás de Mashok. Ele não se virou. O hozen continuava berrando a plenos pulmões, bem longe. Não havia perigo nenhum.
— Cobrirei a terra de cinzas. O fogo queimará até mesmo os insetos que rastejam na terra. Nada crescerá neste solo novamente. E então, somente então…
— Nem cenoura? — perguntou o Fazendeiro Fung. Ele mal conseguia articular as palavras, sufocado pela raiz. Mashok fixou os olhos no pandaren imobilizado. — Não vai dar nem uma cenourinha nessas terras?
Um longo momento se passou. — Até agora querem zombar de mim? — indagou o orc, calmamente. — Até agora…
— É uma perguntinha besta — insistiu Fung. — Vai ou não vai dar cenoura?
— Não! — disse o orc, aos cuspes. Suas palavras ecoaram pelo campo. — Ninguém vai plantar cenoura aqui, nunca mais! — Por que o fazendeiro estava sorrindo? Mashok apertou as raízes que enforcavam o Lavrador até que os espinhos lhe perfurassem a carne. — Acho que vou matar você primeiro — ponderou o orc.
Abruptamente, Mashok estacou. Os espíritos estavam quietos. Quietos demais. Obedientes demais. O resfolegar do campo cessara.
Ele se virou.
O orc foi saudado por um mar de olhinhos vermelhos e brilhantes. Vermingues. Centenas deles. Milhares. Imóveis, apenas observando.
O resfolegar do campo… os espíritos não alertaram Mashok. Um roedor deu um passo à frente. Era o vermingue de pelo rajado e presas estranhas em forma de gancho. Ele farejou algo. Mashok fez um gesto de desdém. — Desapareçam. Agora — disse.
O vermingue da presa volteada inclinou a cabeça, mas não saiu do lugar. — Você… vai matar as cenoura?
Mashok cerrou os dentes. — Desapareçam. — A terra estremeceu ao som daquela palavra. Os espíritos da terra o obedeceram sem hesitar.
O tremor fez a massa de vermingues se agitar, mas os inquietantes olhinhos permaneceram firmes. — Você diz que vai matar cenoura — prosseguiu o vermingue da presa volteada. — Por que matar cenoura?
Aquilo era um absurdo. Eles precisam de uma lição. Mashok ordenou à terra que engolisse o vermingue, que abrisse um abismo sob seus pés.
Não, respondeu a terra.
Mashok sufocou um dos espíritos. Ele agonizou de dor, mas continuou se rebelando. Cada instante de sua existência será de pura dor se não me obedecer, disse Mashok ao espírito. Ele enviou a mesma mensagem aos outros. Não ousem me desobedecer nunca mais. Façam o que eu digo.
— Outros grandão planta cenoura — insistiu o vermingue. — Eles faz uns baita cenourão. Você não vai matar cenoura. Não vai matar os grandão.
Reduzam-nos a cinzas, ordenou o orc a um espírito do fogo.
Não, respondeu o espírito, e gritou.
Um espírito do vento nem sequer esperou a ordem. Não obedecerei, disse ao orc.
Nem eu, disse um espírito da água.
Mashok usou seu poder para infligir aos espíritos toda sorte de sofrimento mental. E nem assim eles cederam.
Eles não lutaram contra nós, disse o espírito do fogo. Não vamos ajudar você.
As raízes se afrouxaram, libertando os pandarens e os membros da Aliança. O draenei grunhiu ao sentir as pontas afiadas saindo de sua carne.
— Não… — sussurrou Mashok.
— Você não vai matar cenoura — repetiu o vermingue da presa volteada. A massa de vermingues repetiu suas palavras.
— Não vai matar cenoura… não vai matar cenoura…
— Obedeçam ou morram! — urrou o orc. Estava confiante de que sua vontade seria feita. — Nada resiste para sempre!
Não será necessário, retorquiram os espíritos em uníssono. Só precisamos resistir por alguns instantes.
Mashok vislumbrou um clarão e foi atingido na cabeça por um golpe devastador. Com a bochecha na terra, o orc viu o martelo radiante de Maraad cair no chão.
O exército de vermingues avançou. — Não vai matar cenoura!
Mashok gritava e tentava se proteger do mar de presas que rebentava sobre ele.
Sons agonizantes emergiam do centro da massa infernal. O orc resistia, mas todos os vermingues que lançava aos ares logo voltavam ao combate. De joelhos e respirando com dificuldade, Haohan assistia à luta. — Eu sabia que esses roedores serviriam para alguma coisa. Você está bem, Gina?
Sua filha respondeu com um aceno, mas ele viu que o pelo dela estava manchado de sangue.
O olhar do draenei cruzou com o de Haohan. — Podes detê-los? — perguntou Maraad. Ele estava com as mãos sobre as feridas na barriga e sofria visivelmente. Aproximou-se mancando de Pata do Monte e se ajoelhou. A Luz irradiou do draenei, e o pandaren deu um assobio surpreso. As feridas do seu ombro haviam desaparecido.
— Deter os vermingues? — Haohan olhou mais uma vez para o caos da fazenda. Pareceu-lhe que o xamã sombrio ainda estava vivo e se debatia, mas estava sendo tragado para uma toca. — Por que eu faria isso? Ele destruiu minha casa.
Devagar, Lyalia aproximou-se de Haohan. — Acredite, eu sei como você se sente — disse. — Mas, mesmo que ele mereça algo muito pior, é melhor o levarmos com vida.
— Justiça?
— É um xamã sombrio — respondeu Lyalia. — Poucos foram levados com vida, e poucos são tão fortes quanto este. Tudo o que conseguirmos aprender será de grande ajuda. — Após um instante, sorriu e acrescentou: — Pela justiça também.
— Você tem razão. Seria um fim fácil demais para ele — grunhiu Haohan, esfregando o ombro dolorido e balançando a cabeça compassivamente. Então, dirigiu-se aos escombros do que um dia fora sua casa. — Onde é que era mesmo…? Ah! — disse ele, revelando a entrada do porão sob um pedaço do telhado. Mesmo na escuridão que precede a aurora, era possível ver as pilhas gigantescas de cenouras. — Gina, você faria as honras?
Gina fez uma careta de dor e pigarreou. — Cenoura! — berrou.
O vermingues se calaram instantaneamente, e os olhinhos vermelhos se viraram para ela.
— As nossas cenouras! De nada! E lá se vai a colheita — disse ela, resmungando a última parte.
Haohan apontou para o porão e fez um aceno exagerado. — Todas as cenouras! Podem pegar!
As criaturas hesitaram, entreolhando-se, lançando olhares do orc ao pandaren e do pandaren ao orc. O vermingue da presa volteada foi o primeiro a abandonar o xamã. Centenas o seguiram.
O Vindicante Maraad avançou contra a corrente de vermingues. Nem todos haviam desistido de bater e morder o orc, de modo que o draenei teve que afastar delicadamente os mais insistentes. Eles resmungaram, mas logo cederam à tentação das cenouras.
O olhar de Mashok era sobrenatural. Ele estava destroçado. Maraad se ajoelhou ao lado dele, preparando-se para curá-lo. — Parece que as coisas não correram como imaginavas — disse o draenei.
O dia raiou.
A carroça rangia bem alto. Em pouco tempo, a casa de Garra de Barro sumiu no horizonte. O Vindicante Maraad vigiava o orc. Seu peitoral estava ao seu lado. A batalha o deixara bastante danificado. Teria que ser consertado ou substituído.
Lyalia vigiava o campo, mas seu olhos procuravam a estrada atrás deles. Cerca de trinta vermingues seguiam de perto a carroça, fitando Mashok. À luz do dia, seus olhinhos vermelhos não eram tão ameaçadores, mas, sempre que algum deles guinchava, o orc se encolhia todo. Estava acorrentado novamente e não dissera uma palavra sequer desde o amanhecer.
Maraad passara a manhã curando o grupo e, por fim, a si próprio. Lyalia fizera companhia ao orc. Haohan enviara uma mensagem a Meia Colina dizendo que precisava de trabalhadores para reerguer sua casa e que forasteiros seriam bem-vindos. Fung reclamara ostensivamente desta última parte.
— Estive pensando — disse Haohan, enquanto conduzia as rédeas. — O que teria acontecido se tivéssemos nos entregado?
— Mas vocês não se entregaram — retorquiu a elfa.
— Mesmo assim. A oferta do nosso amigo era a vida de vocês pela nossa. Se tivéssemos aceitado, o que vocês teriam feito? — Apenas o rangido da carroça lhe respondeu. — Seria um pepino para vocês dois, hein. Vocês enfrentariam a gente para salvar as suas vidas? Ou teriam se entregado à morte por uma oferta que sabiam valer tanto quanto um saco de esterco de mushan? — Haohan gargalhou. — Tomariam vocês por tolos se escolhessem a segunda opção.
— Alguns, sim.
— Tomariam toda a Aliança por uma grande massa de tolos por aprisionar inimigos derrotados em vez de degolá-los, só porque o inimigo é um pouquinho perigoso.
— Alguns, sim — concordou Maraad
— Hum. — Haohan puxou as rédeas e a carroça virou para o sul, numa bifurcação. Em direção a Krasarang. Ao Ancoradouro do Leão. — Eu não tenho jeito. Tagarelando a viagem inteira. Falando bobagem. Incomodando vocês dois depois da noite difícil que tivemos.
Lyalia e Maraad trocaram um olhar breve. O draenei balançou a cabeça sorrindo e retomou a vigília sobre o orc. Mashok se encolheu ao ver um vermingue subir na traseira da carroça, guinchando alto, para logo depois cair na estrada.
— Mas eu estava pensando — prosseguiu Haohan. — Peço que aturem mais um pouquinho as minhas filosofices de fazendeiro. Será que aqueles que pensam que vocês são tolos não estão equivocados? Se alguém elege um princípio, tem que viver por ele. Na vitória e na derrota. Senão o princípio não significa nada. Vocês da Aliança gostam de eleger toda sorte de princípios civilizados. Aposto que há quem pense que isso os deixa em desvantagem quando as coisas complicam.
— Alguns, sim — disse Lyalia
— Hum. Mas eu…
— …estava pensando? — perguntou Maraad.
— Como adivinhou? No que eu estava pensando: ser civilizado talvez seja uma desvantagem às vezes. Se um sujeito tem certeza de que nunca ninguém o apunhalaria pelas costas, pode imaginar que é possível apunhalar os outros e sair ileso. — Haohan estalou as rédeas. — Mas isso seria um erro, não é? Não há nada tão assustador quanto uma pessoa civilizada enfurecida. Alguns não gostariam de passar pela experiência de ter que enfrentar uma pessoa civilizada.
— Alguns, não — concordou Maraad.
— Os vermingues vão nos seguir o caminho todo até a costa? — perguntou Lyalia.
— Provavelmente — respondeu Haohan. O orc estremeceu.
E a carroça seguiu estrada afora.