— Nenhum de vocês sobreviverá até de manhã — disse o orc.
O Vindicante Maraad e a comandante de sentinelas Lyalia o ignoraram. Ele fizera várias ameaças como aquela desde a noite em que fora capturado. Lyalia remanejava a lenha da fogueira com a lâmina de sua glaive lunar. As chamas rugiram. A luz brincava com o martelo de Maraad e fazia reluzir em sua armadura raios ténues, de cor violeta.
— A elfa noturna morrerá primeiro — retomou o orc alguns minutos depois. — Farei com que a veja morrer, draenei. Dou minha palavra. — Ele mudou de posição, fazendo retinir levemente os grilhões em seus pulsos.
Maraad não se dignou a respondê-lo. — Precisas dormir esta noite, Lyalia — aconselhou o draenei.
— Você também — retrucou ela. — Mas já que não pode, eu também não vou dormir. — Ele remexeu as cinzas da fogueira e percorreu a amplidão do descampado com os olhos. — Ademais, ele está com a língua solta hoje. Talvez decida nos dizer seu nome. — Encarou o orc. — Não? Que mal faz dizer um nome, se não sobreviveremos até amanhã?
O prisioneiro de pele verde a fitou, mas não disse uma palavra.
— Como queira — concluiu ela.
O sol tocou o horizonte.
— Que história é essa de “quando o Trovão bater, vai bater com borra?”
O tropeiro hozen saltitava ao longo da estrada que cortava o vale, acompanhando a carroça de Haohan. — Desde que nós partiu, o bicho tá com o rabo preso.
— “Rabo preso?”
Mung-Mung agitou a mão diante do focinho, como se espantasse um cheiro ruim. — Num quero nem ver a bostejada de três dia que vai sair do rabo desse bicho.
— Maravilha — disse Haohan. A última coisa que ele queria hoje era um mushan constipado. — Põe azeite na ração dele. Vai limpar tudo.
— Já faz dois dias que tô botando. Num saiu nada. — Mung-Mung estremeceu.
— Ele passou dois dias comendo azeite? E nada? — indagou Haohan, descrente, e estremecendo também. Quando o trovão bater…
Transpuseram meia milha em silêncio. — O Fazendeiro Fung não perde hora. Já deve tá na sua casa — comentou Mung-Mung.
— Ótimo. Espera — disse Haohan, olhando-o desconfiado. — No que você está pensando?
— Mung-Mung acha que aquele ranheta é doido por esterco.
— E pode gostar de uns ingredientes fresquinhos. É a melhor ideia que você teve nos últimos tempos. — Haohan abriu um sorriso largo. Com sorte, um problema a menos. — Quem mais vai estar na casa?
— O véio doido. — Referia-se ao Velho Pata do Monte. Não era membro do conselho, mas era vizinho. — Gina. — A filha de Haohan.
— Quem mais?
— Só eles — disse Mung-Mung.
— Cadê Nana, Mina, Tina e Den?
— Na Floresta de Jade ainda.
— Ainda? — Haohan franziu o cenho. — Achei que voltassem hoje. Eu queria o conselho todo presente na reunião. E Yoon?
— Foi com eles.
— Ah. — Então Haohan lembrou. Yoon estava negociando um contrato de restaurante com entrega em domicílio com alvanéis enânicos da União dos Lavradores.
Haohan puxou as rédeas de leve e os dois cavalos viraram à direita, pegando a estrada para a fazenda Garra de Barro. Mung-Mung seguiu seu caminhar quadrúpede ao lado carroça, recusando-se a subir nela. Não confiava em cavalos. Haohan também preferia mushans, mas um intendente da Aliança no Ancoradouro do Leão oferecera dois cavalos robustos em troca de uma carga de cenouras. Um Garra de Barros jamais perderia uma barganhas dessas. E era obrigado a admitir que os cavalos eram bem mais fáceis de conduzir. Mesmo um mushan bem treinado tende a desobedecer um pouco as rédeas.
De repente, Mung-Mung saiu correndo e escalou uma placa, fitando o horizonte. — Eita! — disse ele.
— Que foi?
— Escuta, chefe.
— Seus ouvidos são melhores que os meus — respondeu Haohan.
— É barulho de vermingue — disse Mung-Mung.
Haohan suspirou. — Vamos tratar de espantá-los antes que aporrinhem alguém até a morte.
Um dos vermingues se aproximou saltitando. Era um macho grande, de pelo rajado e presas frontais volteadas de um jeito esquisito. Então, ele arremessou um punhado de lascas de madeira no Vindicante Maraad. — Tó dinheiro. Cadê cenoura?
O draenei deixou que as lascas batessem no seu rosto e na armadura, e respondeu calmamente: — Não tenho cenoura nenhuma.
Um burburinho irritado se ergueu da multidão de roedores de olhos vermelhos que havia cercado o trio. Vários deles batiam as patas no chão em tom de ameaça. Ao lado de Maraad, Lyalia levou a mão à glaive lunar, mas não chegou a desembainhá-la.
— Acha que vão nos causar problemas? — sussurrou para ele.
— Duvido muito. — Riu Maraad. Então, falando em alto e bom som: — Querem comprar cenouras? — A menção da palavra deixou as criaturas ainda mais agitadas. — Sinto em desapontá-los. Não tenho cenouras para vender.
O vermingue das lascas de madeira se ergueu sobre as patas traseiras, agitado. — Lá em Meia Colina… lá no mercado! Os grandes traz um monte de bolotas e ganha cenoura. — Dizendo isso, arremessou mais um punhado de lascas. — Cadê cenoura?
Uma chuva de pedacinhos de madeira caiu sobre o prisioneiro. O orc grunhiu e tentou chutar o vermingue, mas errou, fazendo retinir as correntes.
O Vindicante Maraad segurou firme o braço do orc. — Eu já disse, não tenho nada para vender, nem para dar. E a maioria dos comerciantes negocia moedas de ouro… não de madeira.
— Ei! — Uma voz cortou o murmurinho. Lyalia avistou um pandaren e um hozen se aproximando. Um grito de alarme irrompeu dentre os vermingues — Saiam das minhas terras! — praguejou o pandaren.
Os vermingues se espalharam. Um deles se enfiou debaixo das pernas do draenei para recuperar as “moedas”. O hozen tentou acertá-lo com uma pedrada, errando por um triz. Logo, os roedores estavam todos de volta às suas tocas.
— Bichos fedorentos — resmungou o hozen.
— Mil desculpas — disse o pandaren. — Uns meses atrás, esses bichos estavam impossíveis e, de vez em quando, é bom tomarem umas pauladas.
— Não creio que tenham feito por mal. — Sorriu Lyalia.
O hozen inspecionou as moedinhas de madeira, levando uma ao focinho e sorrindo. — Ei, chefe — disse ele. — Eixo. — E desatou a gargalhar.
— Vermingues idiotas… — praguejou o pandaren novamente. — Então é por isso que roeram os eixos de três carroças minhas. Era o que me faltava. Devem ter me visto trocando as carroças por moedas e presumiram que as carroças fossem feitas de moeda. — Ele passou a pata na cabeça e suspirou. — Não tem jeito, está incluído no pacote. Se a gente vem viver no vale, tem que aguentar essas pestes.
— Meu nome é Haohan Garra de Barro. Sou o proprietário dessa fazenda.
— Obrigada pela ajuda, senhor. Meu nome é Lyalia. Sou comandante das Sentinelas de Pandária. Meu amigo aqui é o Vindicante Maraad, da Exodar. E ele… não sabemos o nome dele, então não posso apresentá-lo direito.
Os olhos do pandaren demoraram-se no orc. E nos grilhões. — Não é comum ver um grupo assim por essas bandas.
— Não tencionávamos invadir tua propriedade. Se quiseres que partamos, partiremos — disse Maraad.
Haohan balançou a cabeça. — Contanto que não pisem na minha horta, não tem problema. — Olhou novamente para o orc acorrentado e prosseguiu com cautela: — Achei que vocês já tivessem resolvido suas diferenças.
— A trégua persiste — respondeu Lyalia. — Esse orc exterminou uma pequena caravana da Horda há duas semanas e tentou emboscar minhas Sentinelas dez dias atrás. Depois da trégua. — A expressão da elfa era de frieza. — Cometeu assassinato dos dois lados. Na minha opinião, acho que ele está descontente com a queda de Grito Infernal.
— Então é um criminoso, e não um soldado — ponderou Haohan. O orc emitiu um grunhido ininteligível. Haohan ergueu a sobrancelha. — E a Horda aceita sua… custódia?
— Decidimos evitar qualquer contato com a Horda — disse Maraad. — Um pequeno mal entendido causa um turbilhão de problemas. As tensões ainda estão altas. Não queremos pôr a paz em risco.
— Se não souberem, não se incomodarão. — Haohan cofiou o queixo. — Faz sentido. Bom, então vamos. Minha carroça está logo depois do morro.
Lyalia e Maraad trocaram olhares. — E para onde vamos? — perguntou Lyalia.
— Para a minha casa. Vocês três dormem lá esta noite.
— Agradecemos o convite — disse Maraad —, mas não podemos aceitar.
— Não é nenhum incômodo.
— Não, obrigado.
— Os vermingues vão voltar.
— Daremos um jeito neles — disse Lyalia.
— Acho que vocês não entenderam — insistiu Haohan. — Se bem conheço esses vermingues, eles estão agora mesmo discutindo em suas tocas por que seu plano deu errado. Quando bolarem outro ardil, irão às outras tocas primeiro e convocarão as tropas. Daqui a algumas horas, vocês podem dar de cara com milhares de vermingues babando e matraqueando sobre cenouras, e se vocês não arranjarem as benditas cenouras… — Deu de ombros. — Vocês podem até conseguir se virar, mas não sei se vão achar a luta agradável.
— Pois bem, passaremos a noite em outro lugar. — Maraad parecia perturbado.
— Repito, vocês não entenderam. Se em meia hora vocês não estiverem a cem quilômetros daqui, eles os encontrarão. São persistentes e só vão parar se vocês estiverem dispostos a matar uma meia dúzia para mostrar que não estão para brincadeira. Mas aprenderam na base da paulada a ficar longe das fazendas. Conhecem bem nossos rastelos. Na minha casa tem lugar para todo mundo.
— Mesmo assim, não podemos aceitar — disse Lyalia, lançando um olhar preocupado a Maraad.
De repente, o orc se pronunciou: — Não ofereça ajuda à Aliança, fazendeiro, a menos que queira compartilhar sua sina.
— Hum, percebo. — Ele sorriu para o draenei e para a elfa. — Vocês acham que o prisioneiro é perigoso. Que não sei cuidar de mim mesmo.
Lyalia puxou o pandaren para longe, onde o orc não conseguisse ouvi-los. — Não podemos colocar você em risco. Não sabemos nada sobre ele, nem se está sozinho. Fizemos um desvio enorme para evitar a presença da Horda em Krasarang e chegar ao Ancoradouro do Leão sem sermos vistos. Se ele não estiver trabalhando sozinho, podemos ser atacados a qualquer momento.
Haohan olhou o orc de relance. — Ele é partidário de Grito Infernal? Talvez outros partidários venham resgatá-lo. Está decidido. Vocês ficam na minha casa.
— Não podemos.
— Bom, aqui fora vocês não podem ficar. Estou falando sério sobre os vermingues. Quero ajudar. Essa gente já prejudicou demais a nossa terra. Amanhã de manhã, levarei os três ao Ancoradouro do Leão na minha carroça.
Lyalia hesitou. Aquilo reduziria a viagem em vários dias.
— Não vou aceitar um não como resposta — encerrou Haohan.
O Fazendeiro Fung torceu o nariz para os recém-chegados. — Mais hóspedes, Haohan? Forasteiros, ainda por cima? Está tentando me manipular?
— Estavam sendo importunados pelos vermingues — replicou Haohan. — Vou só abrigá-los essa noite.
— Não brinque comigo — disse Fung, apontando para Haohan. — Você trouxe forasteiros na noite em que vamos discutir sobre forasteiros por pura coincidência? Pelo menos Yoon não está aqui. Deu sorte. Ajuntou-se com uma das boas. Não é porque gosto de uma forasteira que vou querer uma infestação deles no nosso vale.
— Sua opinião foi registrada, Fung — respondeu Haohan, cansado. — Mung-Mung, você não queria conversar com Fung? Uma história de mushan? Ingredientes de fertilizante, talvez?
— Sério? — disse Fung, animando-se.
Mung-Mung lançou um olhar irritado para Haohan enquanto Fung o arrastava para dentro.
— Haohan — disse uma outra voz. Haohan se virou. O Velho Pata do Monte postava-se ao lado do curral dos mushans, chamando-o. — Tem um mushan doente.
— Mung-Mung me falou, Pata do Monte — respondeu Haohan, aproximando-se da cerca. Os dois observaram o curral, onde Trovão mastigava seu feno. — Sei lá. Ele me parece bem.
O mushan arrotou e um odor horrível se espalhou no ar. Haohan torceu o nariz. Era um milagre que as plantas próximas não murchassem. O estrondo do arroto ecoou nas montanhas ao norte. O fazendeiro poderia jurar que o fedor também ecoou. — É, o bicho está doente mesmo — suspirou.
— Dê azeite para ele — disse Pata do Monte. Haohan já antevia a dor de cabeça que aquilo iria lhe causar.
Lyalia ajudou o orc a descer da carroça. Maraad desceu atrás dele.
A elfa noturna notou que havia um pandaren mais velho ao lado de Haohan. Pata do Monte desviou os olhos do mushan e estudou o trio de forasteiros. Ela fez um sinal com a cabeça para ele. O pandaren não devolveu o cumprimento. Um largo chapéu de palha ocultava seus olhos. O pelo do queixo escorria numa barba comprida. Fung pelo menos fora claramente hostil. Já o velho era um mistério para Lyalia.
Ela se concentrou no seu dever: tinha que vigiar o prisioneiro, caso alguém viesse resgatá-lo. Seus olhos percorreram o horizonte.
A casa de Garra de Barro ficava no topo de um morrinho, perto da cordilheira que separava o Vale dos Quatro Ventos do Vale das Flores Eternas, e possuía uma vista espetacular das plantações ao redor. Embora anoitecesse, a elfa pôde vislumbrar filas e mais filas de plantação sumindo ao longe. Entre a casa e a cordilheira, havia uma depressão inclinada que levava a um lago.
Nenhuma ameaça à vista. Hora de lidar com questões um pouco menos importantes.
— Pode cuidar do orc por um instante? — perguntou a Maraad. Ele resmungou que sim.
Lyalia apanhou os cantis vazios e, com cuidado, desceu até a margem do lago. Alguns instantes depois, o velho pandaren se juntou a ela.
— Não pise aí — advertiu ele.
A superfície do grande lago estava plácida. — Por quê?
— Observe — disse Pata do Monte. Ele arremessou uma pedra que ricocheteou na água, causando pequenas ondulações. E então…
… uma coisa gigantesca emergiu das profundezas. Um olho imenso fitou as duas figuras à beira do lago. A criatura devia ser umas setes vezes maior do que Lyalia. Talvez até mais.
Então, ela desapareceu sob as águas, devolvendo a calmaria ao lago.
— O que foi isso?
— É uma Garoupa do Taboa. E das grandes.
— Grande é apelido.
— É por isso que a gente mata esse bicho. Ou devia, pelo menos. Mung-Mung é um baita preguiçoso — resmungou Pata do Monte. — Estará a salvo se não passar da margem, a menos que ela cisme com você. É só não sair entrando na água.
— Não vou me esquecer — disse Lyalia, e terminou de encher os cantis.
O Velho Pata do Monte não foi embora. — Eu conheço os grilhões daquele orc. Vi o signo do Tigre Branco.
— Ah.
— Algemas dos Shado-pan. Do tipo que usam para prender pessoas com… poderes incomuns. Desconhecidos.
— É isso mesmo — confirmou Lyalia. — Foi um presente.
— Os Shado-pan não têm o costume de dar presentes.
— É verdade. Digamos que foi um pagamento em troca de removermos quem pudesse causar problemas à sua terra do jeito mais rápido e discreto possível.
— Agora sim parece coisa dos Shado-pan.
— Você já teve contato com eles?
O Velho Pata do Monte não respondeu. Lyalia não insistiu.
— Há quanto tempo você e seu amigo estão em Pandária? — perguntou Pata do Monte.
— O Vindicante Maraad chegou recentemente e é provável que parta em breve. Mas eu fui uma das primeiras de meu povo a desembarcar nas suas terras.
— Por quê? O que a traz aqui?
Ela hesitou. O pandaren exibia uma expressão neutra. Ela não sabia se ele perguntou por curiosidade ou suspeita. Decidiu ser franca: — Um dos nosso líderes recebeu a visão de uma terra abençoada. Alguns vieram por questões pessoais… — A elfa baixou a cabeça ante a lembrança súbita do pai. — Mas foi a visão que propeliu os navios a zarpar. No fim, a terra prometida era o Vale das Flores Eternas.
— E o que fizeram ao chegar lá?
Lutamos contra os mogu por meses, e isso só serviu para ver um orc tirano destruir tudo. Havia um limite no que Lyalia desejava compartilhar. — Tentamos protegê-la. — Sua voz reduziu-se a um sussurro. — Eluna sabe que tentei.
Fez-se silêncio sobre o lago. A água se agitou. Por fim, Pata do Monte soltou um grunhido e foi embora sem dizer uma palavra sequer.
Lyalia voltou os olhos para o lago. Não havia sinal do perigo que habitava suas águas.
Um dedo grosseiro e verde remexeu as cinzas da fogueira extinta. — Ainda está quente. Passaram a noite aqui. — O orc se virou para seus oito companheiros. — Atacaremos antes do amanhecer. Preparem as duplas.
— Os espíritos não querem se comportar, Zertin — disse um deles, inquieto.
— Os espíritos daqui são mimados e mal acostumados, Zishok — respondeu Zertin com raiva. — São crianças que precisam ser disciplinadas. Se não consegue cuidar de uma criança, abra suas veias agora e poupe-me do trabalho de estripá-lo.
Não houve mais objeções.
— Ótimo. Vamos.
E assim o fizeram. Em silêncio. Encobertos pela escuridão da noite.
— Não use o molho todo, Gina — disse o Fazendeiro Fung. — Você vai ensopar a carne.
— Seria horrível, né — disse Gina Garra de Barro sem um pingo de sarcasmo. Ela tinha os olhos fixos no pai, Haohan. Ele não devolveu o olhar. Estava concentrado demais em picar os legumes. — Imagine só a carne macia, saborosa, se desfazendo na boca. Uma tragédia. — Talvez estivesse sendo sarcástica no fim das contas.
— Carne fresca não precisa de tanto molho. Mas esse frango é do Velho Pata do Monte, não é? Isso explica tudo. Se fosse criação minha, não teria esse gosto de cervo. Entendo por que você quer pôr tanto molho. Mas use apenas a metade — admoestou Fung.
— Sua língua — replicou o Velho Pata do Monte — também não ajuda em nada, Fung.
Gina abriu um sorriso de mofa para Fung e deitou o molho todinho no wok. O fazendeiro fez um muxoxo de desaprovação.
— Onde estão nossos hóspedes? — perguntou Gina.
— No porão — respondeu Haohan. Ele recuou diante da reação da filha. — Foi escolha deles, Gina, não minha.
— Apertados lá embaixo — resmungou ela. — Amassados no meio das cenouras.
— Tem espaço para três, se eles se entenderem bem entre si.
— Ou se um deles estiver acorrentado e não puder opinar — acrescentou Fung.
— Verdade. Eles pediram para trancarmos as portas à noite.
Gina encheu três tigelas de sopa e passou a concha para Fung. — Veja se consegue salvar meu refogado — pediu ela, sarcástica. — Vou levar comida para os hóspedes. — E antes que Fung pudesse objetar, afastou-se do wok, equilibrando as tigelas nos braços.
Um alarido ensurdecedor reverberava nas tocas. — Dentanzol falou pra pegar cenoura! — Gritou um vermingue. — Nós dá dinheiro, eles dá cenoura. Sem roubar! Nós vai comprar! Foi isso que Dentanzol falou!
— Nós vai roer as moeda da carroça. Foi isso que você falou! Os grandão não quer moeda de carroça. Eles quer moeda brilhante. Não é culpa minha — grunhiu Dentanzol em resposta, o pelo eriçado.
A matriarca bateu o pé no chão e rugiu. A multidão se calou. Centenas de olhinhos brilhantes e vermelhos se voltaram para ela. A matriarca percorreu a toca, fuzilando Dentanzol com o olhar. Ele estremeceu e engoliu em seco, mas não disse nada. — Dentanzol tem razão. Grandões quer brilhante. Não moeda de carroça. Amanhã nós vai roubar brilhante dos grandão e usar o brilhante pra comprar cenoura!
— Pra que roubar brilhante? — perguntou um vermingue mirrado. Um vermingue maior mordeu sua orelha com força. O pequeno se afastou e se recusou a calar. — Por que não roubar cenoura como sempre?
— A gente rouba cenoura, eles bate com rastelo e pá. A gente compra, eles não bate — respondeu a matriarca.
— Com que eles bate quando a gente rouba brilhante? — insistiu o vermingue.
Os outros não haviam pensado naquilo. A briga recomeçou.
Então Dentanzol bradou: — Silêncio! — E fez-se silêncio nas tocas. — Ouçam! — A terra tremia de leve. Passos. Sobre suas cabeças. Grandes demais para serem vermingues. — Mais grandões! Talvez tenham cenoura!
Os vermingues irromperam em debandada de suas tocas. — Tragam as moeda de carroça! — gritou a matriarca.
Nove grandões atravessavam o campo de nabos. Era estranho não usarem a estrada, pensou Dentanzol. Em pouco tempo, os nove estavam cercados.
— Cenoura! Cenoura! — entoavam em coro os vermingues. Dentanzol se aproximou e lançou várias moedas de carroça na cara do orc que vinha na ponta. Então ele estacou. Uma expressão de fúria profunda se desenhou no rosto do grandão. Dentanzol lançou mais um punhado de moedas e voltou para perto dos seus. Algo nos olhos do forasteiro o deixara apreensivo.
A matriarca deu um passo à frente. — Nós temos moeda. Nós queremos cenoura. Vocês dão…
Uma rajada de vento a derrubou. Os vermingues se calaram. Às vezes, o vento se erguia e a terra tremia, mas sempre davam sinais do que estavam prestes a fazer. Os vermingues aprenderam a identificar os sinais. Sabiam ficar entocados na iminência da tempestade e fugir das tocas se pudessem desabar num tremor de terra. Os espíritos podiam ser maliciosos e zombeteiros, mas raramente eram cruéis e nunca prejudicavam os vermingues sem motivo. E jamais o fariam por ordem dos grandões.
A matriarca recuperou o equilíbrio. Sua insegurança durou apenas alguns instantes. Guinchando de raiva, ela saltou à frente. — Cadê cenoura! Toma moeda!
Mais uma vez, sem nenhum aviso, o vento a ergueu no ar. A matriarca gritava e era como se os espíritos gritassem junto. De súbito, o vento a derrubou e a terra veio de encontro ao seu corpo.
Juntos, terra e vento a esmagaram, uivando em uníssono.
Os vermingues recuaram. Os restos da matriarca despencaram no chão, inertes.
Os grandões sorriram.
Dentanzol correu para a toca com os outros, urrando a plenos pulmões. Todos haviam passado por várias coisas estranhas nos últimos meses — a energia maligna do sha que os deixara em fervorosa, os ataques dos hozen, as multidões de forasteiros que marchavam sobre o Vale dos Quatro Ventos — e ninguém queria nem saber do poder novo que aqueles nove orcs possuíam.
Os vermingues se amontoaram nas tocas, em silêncio, esperando que os grandões fossem embora logo.
Gina levou as tigelas fumegantes de sopa porão abaixo. O draenei e a elfa conversavam baixinho, escorados na pilha de cenouras. O orc estava sentado contra a parede suja ao norte. Ele sorria.
— Por que está tão feliz? — perguntou Gina.
— Eu até perguntaria se ele se dignasse a responder — respondeu o Vindicante Maraad. O draenei continuava de armadura e deixara o martelo ao alcance da mão.
Gina deu uma tigela a Lyalia e outra a Maraad. Depositou a restante aos pés do orc. O prisioneiro nem sequer olhou para a comida e para a pandarena. — Vocês dois sempre viajam juntos?
— É a primeira vez — disse Lyalia.
— Por opção ou por necessidade?
— Os dois — respondeu Maraad. — Eu me ofereci para ajudar os Shado-pan a encontrar o culpado dos ataques aos comboios. Havia algumas Sentinelas na região. Nós nos dividimos em duplas. E aqui estamos.
— Os draenei fazem negócios com os Shado-pan?
Maraad deu um ligeiro sorriso. — Não da forma que imaginas. A campanha na tua terra terminou. O profeta Velen quer relações sólidas com todos os habitantes de Pandária. Ele veio para cá e vai passar a maior parte do tempo no norte. É um lugar fascinante com uma história fascinante. Há muito o que aprender aqui. — Ele bebericou da tigela de sopa.
— Até que trabalhamos bem juntos — ponderou Lyalia —, considerando que nenhum de nós dorme há seis dias.
— Seis? — Gina arregalou os olhos.
— Maraad vigia o orc. — A elfa se perguntou se seria necessário explicar que os paladinos possuem meios de impedir a conjuração de feitiços. Ela não tinha ideia se os pandarens sabiam dessas coisas, mesmo após meses de convívio com os forasteiros. Gina limitou-se a concordar com a cabeça. Talvez compreendesse. — E eu vigio os arredores. — A elfa fez uma careta. — Sei que não devíamos deixar o vale indefeso, mas queria que tivéssemos mais Sentinelas nesta viagem. Ou pelo menos meu sabre-da-noite. — Cinza machucara a pata havia algumas semanas e Lyalia teve medo de que ainda não conseguisse suportar uma viagem tão longa.
— O vale? Ainda há necessidade de defendê-lo?
— A maioria dos Shado-pan foi para o norte, para Kun-Lai. Rumo ao Templo do Tigre Branco — disse Maraad. — Tu não soubeste da…
Trum trum trum trum…
Maraad se calou. Gina inclinou a cabeça. — Que barulho é esse?
… TRUM trum trum trum TRUM trum trum trum…
O orc ergueu os olhos. Seu sorriso possuía um ar bestial. O som reverberava nas paredes de terra do porão. Pedacinhos de terra caíam do teto.
— Maraad… — Lyalia procurou a glaive lunar. — Parece que está vindo do chão. São os elementos?
— Não sou xamã, mas creio que sim — replicou o draenei. O seu martelo começou a brilhar, infundido de Luz.
Lyalia vestiu as manoplas. Franziu o cenho. — Agora sabemos o que nosso amigo faz, não é mesmo?
— Sabemos.
Haohan, Pata do Monte e Fung pararam de conversar imediatamente ao sentirem o chão tremer num estranho ritmo. TRUM trum trum trum…
— Isso não é nada bom — disse Fung.
A porta do porão se escancarou. Gina irrompeu num salto e, logo depois, vieram os dois membros da Aliança empurrando o orc.
— Não — disse a elfa noturna. — nem um pouco.
— Olha só para esses fedentinos — sussurrou Mung-Mung.
Dependurado numa árvore ao lado da casa de Garra de Barro, o hozen avistou nove orcs formando um largo semicírculo. Com as montanhas ao norte, o único jeito de fugir seria passando no meio deles. Dois orcs mexiam os braços no mesmo ritmo dos tremores.
TRUM trum trum trum…
Estavam tentando intimidar. Fazendo pose. Mung-Mung conhecia bem a situação. Quando tinha seis anos (e se chamava apenas Mung), um hozen maior o derrubara no chão. O agressor batera no próprio peito e ordenara-lhe que permanecesse no chão, que desistisse e deixasse a caça a aves selvagens “para os catinguentos sinistrões”.
TRUM trum trum trum…
No fim, o hozen maior fora derrotado. Mung conquistou seu nome-nome naquele dia. Mung-Mung.
— Eles querem se meter com um catinguento sinistrão? — sussurrou — Por Mung-Mung, tudo bem.
Contou novamente. Nove orcs.
— Temos uma má notícia: nosso prisioneiro e os outros orcs são xamãs sombrios — afirmou Maraad.
O prisioneiro se endireitou e disse: — São membros da verdadeira Horda. Seguem as minhas ordens. Sou Mashok, dos Kor’kron. Eu lidero os xamãs sombrios neste continente. — Então, escarneceu de Lyalia: — Você tem razão, Aliada. Como não vão sobreviver até de manhã, não faz mal contar.
— Kor’kron? — O Fazendeiro Fung não parecia surpreso. — Os jagunços de Grito Infernal? Eles não se saíram muito bem em Orgrimmar.
— É o que me disseram — concordou Gina.
— Tinham protodracos e o poder de um sha, mas nem assim conseguiram vencer — acrescentou Haohan.
Uma expressão horrível se desenhou no rosto de Mashok. Suas correntes retiniram. — Cuidado com o que dizem, ou vão acabar perdendo a língua. Alguns de vocês ainda têm chance ver o sol nascer mais uma vez.
TRUM trum trum trum TRUM trum trum trum…
Mashok ergueu as mãos acorrentadas e estalou os dedos. O ritmo cessou imediatamente. Lyalia lançou um olhar de espanto para Maraad. Sem tirar os olhos do orc, o draenei fez um gesto discreto com o martelo. Apontava para os grilhões dos Shado-pan. A elfa compreendeu a mensagem. Os grilhões suprimiam grande parte do poder do orc, mas não o extinguiam completamente.
O silêncio se abateu sobre a fazenda Garra de Barro.
Mas durou pouco.
— Então os xamãs sombrios sabem fazer música — zombou o Fazendeiro Fung. — Era pra gente estar com medo? Já ouvi melhores.
— O que você ouviu — disse Mashok, num tom de deleite — foram os espíritos elementais da sua terra marchando. Eles estão sob nosso controle. Treinamos em Durotar, pandaren tolo. Uma terra dura, ao contrário da sua, que é verdejante, ingênua e frágil. Os espíritos daqui não tiveram nem chance de resistir.
O Velho Pata do Monte rompeu, então, o silêncio que mantivera durante toda a conversa: — Pois bem. Xamã sombrio. Dominador dos elementos. Membro da “verdadeira Horda”. — Ele aproximou-se de Mashok. — Capturado por só dois membros da Aliança. De fato, seu poder não tem limites. Por que estava atacando acampamentos da Horda antes de ser pego? Porque não faziam parte da “verdadeira Horda”?
— Eles escolheram trair o chefe guerreiro. Mereciam uma punição bem pior. — Gargalhou Mashok.
O Velho Pata do Monte prosseguiu: — Pode explicar o que um grupo de xamãs sombrios Kor’kron está fazendo em Pandária? É óbvio que não estavam presentes em Orgrimmar. Foram deixados para trás depois que seu chefe profanou nossas terras? — Os olhos do orc reluziram. Pata do Monte aquiesceu. — Foi o que suspeitei. Não mereceram um lugar nos planos de Grito Infernal quando ele voltou para Orgrimmar.
— Só vou oferecer uma oportunidade a vocês, fazendeiros — grunhiu o orc. — Há quinze Kor’krons lá fora, nesse exato instante. Vocês…
— Nove. São nove. — Mung-Mung adentrou a casa pela janela e aterrissou numa mesa. Ele coçou o sovaco e sorriu para o orc. — Mung-Mung conferiu duas vezes.
Mashok grunhiu. Maraad e Lyalia trocaram olhares preocupados. Noves xamãs sombrios? Era um número ruim, ainda que não fossem a elite de Grito Infernal. Mas era melhor do que quinze. Interessante Mashok sentir a necessidade de mentir, pensou Maraad.
— Pandarens, se tiverem um pingo de inteligência, é melhor prestarem atenção — ameaçou o orc. — Me soltem agora. Agora. E eu não os matarei. Só matarei eles — disse, apontando para o Vindicante Maraad e para Lyalia. — Mas não vocês. Se resistirem, farei esta casa vir abaixo diante dos seus olhos.
Pata do Monte respondeu com um arroubo de raiva. Ele ficou cara a cara com o orc. — Estas terras não são suas para sair dando ordens. Eu formei minha família aqui. Enterrei minha família aqui. Estas terras são e sempre serão nossas. Você realmente acha que nos entregaremos a gente da sua laia?
— Você não está mais incluído na oferta — disse Mashok, sorrindo para o velho. — O resto de vocês deve se decidir logo.
— Esqueça — interviu Haohan. — Não somos burros. Você não pouparia nenhum de nós. — Os outros Lavradores concordaram.
Maraad soltou um longo suspiro. Se os Lavradores tivessem se entregado…
— Nós os deteremos o máximo possível — disse a elfa, lançando outro olhar preocupado para Maraad. Nove contra dois. Na melhor das hipóteses, ganhariam alguns minutos. — Corram para Meia Colina. Soem o alarme. A Aliança os ajudará. E, provavelmente, a Horda também — acrescentou, relutante.
— Podem esquecer isso também — retorquiu Gina. — Não vamos fugir.
— Não é vossa luta — disse Maraad.
— É a minha casa — asseverou Haohan.
— Eu estava falando sério. — Os olhos de Pata do Monte brilhavam. — Não me entregarei. Nesta terra não há covardes. Se acharam que não iríamos lutar, não nos conhecem muito bem.
— Não precisa exagerar, Pata do Monte — fungou o Fazendeiro Fung, com desdém. — Mas está certo. Também não vou fugir.
— Idiotas, tolos e fracos — praguejou o orc prisioneiro. — Vocês merecem mesmo o sofrimento que está por vir.
Todos o ignoraram. Maraad sorriu. — Proponho o seguinte: trancamos o prisioneiro no porão. Eu vou na frente para desviar a atenção deles…
Um barulho o interrompeu. O retinir do aço. Baques surdos.
Os grilhões de Mashok se chocavam contra o chão.
Uma vinha esguia se encolheu, desaparecendo no vão entre duas tábuas de madeira. Ela havia arrombado a fechadura. O orc estava livre.
Raízes grossas e espinhentas irromperam do chão em três pontos diferentes. O Vindicante Maraad não hesitou. Atacou com o poder da Luz. O orc estremeceu, caindo de joelhos. As raízes se contorceram.
Logo em seguida, o orc sorriu e se levantou. As raízes se moviam aos espasmos.
Maraad intensificou o poder da luz, entorpecendo o orc e impedindo-o de conjurar seus poderes, mas podia perceber que o xamã sombrio resistia e, pouco a pouco, recobrava as forças. Os xamãs sombrios que estavam do lado de fora forçavam os espíritos a lhe prestar auxílio.
— Vou voltar a prendê-lo — disse Gina, recolhendo os grilhões.
— Afasta-te — advertiu o draenei.
— Eu não tenho medo dele. Posso…
— Não te aproximes dele. — O draenei ficou aliviado ao ver Gina se afastar. Ele observara a postura do orc. Mashok a teria feito de refém ou a assassinado na hora. Uma onda de energia fluía para dentro do orc, e Maraad se esforçava para contê-la. Os grilhões não adiantariam de nada, a menos que Maraad conseguisse subjugar o orc primeiro.
A Luz era infinitamente poderosa. O Vindicante Maraad tinha fé nisso. Mas ele era um simples receptáculo. E receptáculos têm limites. E defeitos. Ele sabia muito bem disso. Aqueles nove xamãs sombrios — dez, incluindo Mashok — iriam subjugá-lo mais cedo ou mais tarde. Alguém precisava deter os xamãs que estavam lá fora. E alguém precisava deter Mashok.
A elfa ergueu a glaive lunar. Maraad sentiu o olhar preocupado da companheira. — Tudo bem? — perguntou ela.
— Mashok e eu temos muito a discutir — replicou o draenei. — Vamos continuar nossa conversa no porão. Não queremos atrapalhar.
Lyalia quedou imóvel e fez uma pergunta com o olhar: Tem certeza? Maraad fez que sim. A elfa cerrou os dentes.
O orc percebeu a comunicação silenciosa entre os dois e riu. Maraad redirecionou um pouco do poder da Luz para o chão ao redor do xamã. O solo consagrado estalava de energia. Apenas um pequeno círculo sob os pés do orc permanecia intocado. Lentamente, Maraad moveu o círculo na direção da porta do porão. Mashok seguiu o movimento, intrigado. O draenei sabia que o xamã seria capaz de romper o círculo consagrado se quisesse, mas despenderia muita força — e sentiria muita, mas muita dor.
A face de Mashok se amargou quando ele se deu conta de que estava sendo encurralado no porão. — Pois bem, draenei. Vamos terminar logo com isso — disse o orc, e então desceu a escada do porão sem oferecer resistência.
— Barrem as portas do porão — disse Maraad, lançando um último olhar a Lyalia. — Que a Luz esteja contigo. Sê forte, Sentinela.
— Venha com a gente assim que puder, Vindicante — respondeu a elfa.
As portas se fecharam às suas costas, mergulhando o porão em trevas. Apenas a Luz que irradiava do martelo de Maraad lhe permitia ver alguma coisa. Mais uma vez, o orc estava sentado tranquilo contra a parede suja ao norte.
— Podemos começar, paladino? — perguntou Mashok.
— Podemos — respondeu Maraad, sorvendo profundamente o poder da Luz.
Haohan passou uma faca enorme pelas maçanetas da porta. Aquilo a manteria fechada por enquanto.
O pandaren fitou as raízes que jaziam no chão. — Raiz-de-cobra — disse o Fazendeiro Fung. — Desde quando você cultiva raiz-de-cobra, Haohan?
— Já viu o preço do minério em Meia Colina? Os forasteiros compram aos montes. — Haohan balançou a cabeça — Pareceu uma boa ideia na hora. Talvez ainda seja. Vou precisar do dinheiro para consertar o piso.
O hozen deu uma espiada pela porta. — Os orcs estão esperando. Não dão um passo — disse Mung-Mung.
— Temos chance? — O tom de Gina era calmo. — Não estou esperando nenhum milagre. Temos alguma chance de vencer nove desses… xamãs sombrios?
Lyalia gostaria de poder dizer que sim. — Se sucumbirmos, não será por falta de esforço — foi o que resolveu responder. — Ninguém é invencível.
— Por que eles não atacaram antes?
Todos se viraram para o Velho Pata do Monte. — Como assim? — perguntou Lyalia.
— Se tivessem atacado vocês na estrada, seriam nove contra dois. Agora são nove contra sete. Bom, seis. — O Velho Pata do Monte fitava a porta do porão e tamborilava sobre a bochecha com uma de suas garras. — Por que não atacaram vocês dois antes?
— Estávamos andando rápido. — Mas não era tão rápido assim.
— Pode ser. — Mas o velho não estava convencido. — Talvez tivesse outro motivo. Esse… Mashok… parece o mais forte do bando. Talvez não lutem tão bem sem ele. Talvez…
— Aonde você quer chegar, Pata do Monte? — interrompeu Fung.
— Eles podem ter esperado para atacar por muitos motivos. Mas eles estavam em número tão maior… o que poderia pesar mais que isso? Deve ser algo bastante significativo. — A voz de Pata do Monte baixou num sussurro. — Talvez estejamos em vantagem aqui. Eles não conhecem a terra. Nós conhecemos.
— Certamente, isso vai ajudar — ponderou Lyalia. — Conhecer o terreno é vital.
— Não — discordou o pandaren. — Nós conhecemos a terra. Lavradores não são como xamãs. Não conversamos com os espíritos elementais. Mas trabalhamos com eles todos os dias. — Ele ergueu as patas. — Cuidamos deles. Lutamos para protegê-los. Devotamos a eles o trabalho de gerações e mais gerações.
— O xamanismo sombrio é cruel. Não o conheço detalhadamente, mas não sei se nossos espíritos resistirão. — Lyalia não queria lhes dar falsas esperanças.
— Mashok disse que os espíritos daqui são frágeis. Se ele e os outros orcs acreditam nisso, estão redondamente enganados — disse Pata do Monte.
— Ingênuos. Ele os chamou de ingênuos. — Subitamente, Haohan entendeu tudo.
Lyalia observou que todos se animavam. — Ele está errado?
— E nem imagina o quanto — disse Gina, sorrindo com satisfação.
— Aquele barulho estranho, o ritmo da terra — interveio Fung. — Os espíritos devem ter se divertido. Mas não vão achar nada divertido quando os mandarem matar o povo que mantém a terra irrigada e o solo arado.
— Você viu o lago, elfa noturna — disse Pata do Monte. — Grandes predadores crescem entre nosso plantio. Não é um vale manso.
— Entendo. — Lyalia olhava de esguelha pelo vão da porta. Ninguém se mexia. Os xamãs mantinham suas posições, esperando.
— Temos chance de vencer? — repetiu Gina.
— Vocês têm armas? — perguntou Lyalia.
— Temos nossos rastelos e enxadas — replicou Haohan.
— Não nos olhe com essa cara, elfa — reclamou Fung. — Sabemos nos cuidar.
Lyalia tentou se acalmar. Não eram guerreiros. Não tinham treinamento. Mas tinham o direito de lutar por sua terra. — Se temos chance? — Ela se virou para Gina — Claro. Vou lhe contar uma coisa: eu passei meses no Vale das Flores Eternas. Fiz tudo o que pude para protegê-lo. Não foi o bastante. Não deixarei que façam com a sua casa o que Grito Infernal fez com o vale. Terão que me matar primeiro. — Então, encarou a porta. — Eu vou na frente. Assim, me tomarão por um adversária perigosa. — E se forem mais poderosos do que imaginamos, minha morte rápida será um sinal para vocês fugirem. Um pensamento nefasto.
— Lá vamos nós — disse Lyalia.
— Você pretende usar isso? — perguntou o orc. O espaço fechado do porão conferia à sua voz um tom alto e sobrenatural.
Maraad olhou para o martelo, que brilhava com a Luz. — Agora não.
Os dois estavam sentados de pernas cruzadas, encarando um ao outro através do estreito corredor formado pelas pilhas de cenouras. Um observador incauto poderia achar que estavam meditando enquanto se preparavam para a batalha.
Poucos perceberiam que a batalha já havia começado. Fagulhas de energia estalavam no ar. Faíscas amarelas espiralavam ao redor de Maraad. Clarões marrons e vermelhos irrompiam em volta de Mashok.
Maraad usava o poder da Luz para restringir o orc enquanto esperava o próximo ataque. Não demorou e um jabe ligeiro foi desferido, evocando o poder da terra. Maraad defletiu o golpe.
— Um só golpe de martelo em mim e tudo isso terminaria — provocou Mashok. — Do contrário, vou manter minha promessa: vou fazer com que você assista à morte deles.
O draenei não mordeu a isca. Ele nem piscou. A concentração necessária para derrubar o orc com um golpe de martelo daria ao xamã sombrio um instante de acesso livre aos espíritos. E era aí que residia o perigo. Não na força, mas na velocidade. Mashok era rápido. Maraad só teria tempo de desferir uma martelada.
Aguardaria um momento melhor para usar o trunfo.
O orc começou a explorar as possibilidades do espaço. Vinha daqui, dali, daqui, dali… cada vez mais rápido. Maraad acompanhava o ritmo do inimigo, defletindo todos os golpes.
Rios de suor escorriam do rosto dos dois adversários. As cores se tornavam cada vez mais intensas.
— Vocês vão me obedecer — rugiu o xamã sombrio Kishok. A resposta dos espíritos veio numa rajada de súplicas confusas, atropelando-se umas às outras:
Não compreendemos não queremos não sabemos não precisamos nós odiamos não podemos não vamos
O orc projetou seu poder no totem e lançou-o contra os espíritos. Eles urraram de dor. O orc sorriu. Não era tão difícil. Os espíritos haviam se rebelado pouco depois de Zertin os obrigar a matar a matriarca vermingue, mas, agora que os Kor’kron haviam iniciado a conjuração, os elementos logo ficaram sob controle.
— Vocês me emprestarão sua força — declarou Kishok. — Vocês me emprestarão um servo. Façam com que venha até mim o mais forte de vocês. Tragam-no a mim. — Mais urros de medo e dor. Eles resistiram. Lutaram. Por fim, cederam. Kishok sentia o calor mesmo antes de a criatura aparecer. — Perfeito. — Ele se endireitou e abriu os braços para receber o elemental de fogo mais poderoso daquela terra.
Fush.
Kishok baixou os olhos. O elemental dobrou o pescoço para olhá-lo de volta. Ele mal chegava aos joelhos dele. Estava usando uma máscara ornamental. Era brincalhão. Infantil.
— Zombam de mim! — rugiu ele — Como ousam me enviar isso? — O elemental se encolheu, o medo escancarado nos olhos arregalados. — É uma criança! Eu exijo força. Exijo…
— Lá está ela! — Um dos orcs apontou para a casa. Gritos de alerta ressoaram entre os Kor’kron.